sábado, 16 de fevereiro de 2013

PORQUE HOJE É SÁBADO...



A GARGALHADA

Adalgisa Nery

— Não grita, por favor.

— Não estou gritando. Estou rindo.

— Falar alto ou gargalhar é a mesma coisa. É manifestação de animalidade que a minha natureza não suporta. Vocês conhecem a minha fascinação pelas mulheres. Nada para mim tem um poder de atração maior do que uma mulher. Porém a mulher mais linda, a mais perfeita, a mais fascinante, falando alto ou gargalhando, faz crescer em mim um ímpeto monstruoso e sinto que sou capaz de abrir com as mãos o seu pescoço. Fico desvairado; é uma repulsa incontida. Só os animais se expressam com alarido, só as criaturas desclassificadas, moral e espiritualmente, falam aos gritos e riem com a garganta. Já sabem, não gritem nem dêem gargalhadas perto de mim se não quiserem transformar-me num criminoso. Fico descontrolado com o barulho, seja ele qual for.

Gaspar e dois amigos conversavam num bar, de madrugada, onde a fumaça dos cigarros e o cheiro de álcool misturavam-se ao som de um piano tocado por dedos já cansados e indiferentes ao ambiente.

André, de temperamento alegre, depois de tomar duas ou três doses de álcool, expandia-se em piadas de mau gosto, acompanhadas de estridentes gargalhadas.

O outro, Maurício, quase silencioso, observava demoradamente os freqüentadores do bar, Possuía um interesse especial por dois detalhes do corpo humano: mãos e nucas.

— Gaspar, você define e classifica as criaturas pelo falar alto e o gargalhar. Tem razão. Não pode haver inteligência nem condições espirituais numa pessoa que expressa suas alegrias e suas opiniões aos berros. Vocês dois criticam sempre a minha atitude quando em silêncio fico a maior parte do tempo com os olhos pregados nas mãos e na nuca das pessoas à minha frente. Eu explico. Gosto de definir, através das mãos e da nuca, a essência do indivíduo. Reparem, por exemplo, aquele sujeito sentado na mesa à nossa esquerda. Forçosamente tem de ser uma pessoa mesquinha, de fundo avarento, capaz de sujeiras freqüentes nas vinte e quatro horas do dia. Está acompanhado de uma mulher que chama a atenção unicamente pela tristeza do olhar. O resto é comum e insignificante. O seu modo de trajar é suburbano. O seu olhar, entretanto, carrega pesadas humilhações e penas. O homem que a acompanha não vê nada disso que esmaga a pobre mulher.

— E você, Maurício, verificou a tristeza da mulher e a mesquinhez do caráter do homem pelas mãos dele, só pelas mãos? — perguntou André.

— Sim, pelas mãos. Observem seus gestos e a forma das suas mãos curtas e gordas, achatadas, de unhas minúsculas enterradas na carne, dedos cabeludos, pulsos cabeludos. Suas mãos, quando paradas, assemelham-se a aranhas adormecidas. São mãos asquerosas, devem ter uma transpiração abundante. Sempre molhadas de suor. Reparem nos seus gestos em curvas pequenas em direção à sua barriga, Parecem trazer as migalhas da mesa para o seu estômago. Nada em seu físico define com mais segurança a sua mesquinha personalidade do que as suas mãos.

— Você o conhece, para marcá-lo assim de maneira tão positiva?

— Não, nunca o vi. Mas desde que cheguei notei a sua repelente personalidade pelas suas mãos cabeludas, curtas e de movimentos repulsivos.

Enquanto Maurício falava sobre as suas observações, o homem reclamava aos brados, do garçom, uma insignificante quantia adicionada à nota das despesas. Dava a entender que o pagamento daquele mínimo excedente iria obrigá-lo a voltar a pé para casa.

A mulher que o acompanhava, de olhos baixos, sentia a humilhação de quem contribuíra para um grave problema financeiro do companheiro que a trouxera para o bar; como se reclamasse o preço excessivo da sua presença ao seu lado, A mulher somava tristezas.

Maurício olhou para os amigos com ar vitorioso de quem acerta no objetivo. 0 homem de mãos curtas e cabeludas exibira a sua essência.

— Vejam também agora a nuca deste sujeito que está sentado de costas para nós. Nuca pálida, enxundiosa, com o nascimento do cabelo muito alto e semelhante a uma franja rala. Nuca de homem tem de ser com o nascimento do cabelo no meio do pescoço, de fios grossos marcando vitalidade e decisão de atitudes. Desconfiem de todo homem que possuir uma nuca que sobe até o meio da cabeça. Não escapará de ser um indivíduo desleal, traiçoeiro, com tendência à vida sórdida, vivendo da exploração de mulheres.

— Ora, isso é bobagem. E os que não têm pescoço, os que não têm nuca, os que têm a cabeça. Diretamente pregada nos ombros, como são? — perguntou André já bastante alcoolizado.

— Bem, esses são os burros teimosos. Teimosos e vaidosos. Esses são perigosos. Sentem-se um deus de sabedoria e, se têm uma parcela de poder ou uma fortuna assegurada, entendem que têm o direito de arrasar com a humanidade, e que as suas opiniões estão na razão direta do seu dinheiro, Como já disse, esses sem pescoço são perigosos para a coletividade.

Nesse instante, Maurício chamou a atenção dos companheiros para o homem da nuca flácida.

— Reparem o que ele está fazendo e vejam como os meus estudos são infalíveis!

O homem recebia, sob a toalha da mesa, das mãos da mulher que o acompanhava, o dinheiro com que iria pagar as despesas feitas.

— Qual é a sua finalidade, Maurício, ao estudar e observar a personalidade das criaturas através dos detalhes das mãos e da nuca?

— A de definir para conhecer a essência das coisas. É um estudo como outro qualquer. É um divertimento. Meus estudos e observações não impedirão o nascimento de homens mesquinhos, sórdidos e de vidas repugnantes, eu sei. Mas cada vez que acerto nas minhas observações, mais vontade tenho de observar para acertar. É uma espécie de jogo comigo mesmo. O princípio da ignorância humana é o definir aquilo que se fala ou o que se prefere falar, sobre o que ainda não se sabe e nem se pode definir. Eu falo do que ainda não se pode definir. Tento chegar à ignorância humana.

— Por exemplo, o descontrole de Gaspar ao ouvir alguém gritar ou dar gargalhadas, parece-me uma reação intimamente ligada à sua sensibilidade. As suas impressões, as suas visões ou os seus ímpetos inesperados devem variar dependendo da sua receptividade brutalizada por risos estridentes e barulhos fortes. A reação da sensibilidade de cada pessoa pode encaminhar-se para o estoicismo ou para o crime. Conheci um rapaz que desde menino perdia a fala quando cercado de conversas tumultuosas ou de ruídos agudos. Permanecia completamente mudo por várias horas. Mas mudo mesmo. Trancava-se no quarto e entregava-se à leitura. A família desorientava-se com a sua mudez prolongada e repentina. A medicina não oferecia maiores explicações. A sua mudez era total e a sua audição também seguia o mesmo processo. No dia seguinte aparecia com a fala e a audição perfeitamente normais. Assustava-se, terrivelmente, quando ao longe percebia o ronco dos motores de um avião no céu. Quando o telefone tocava, se ele estivesse perto, corria para o quarto como um animal batido. Diziam que era um desequilibrado, mas essa conclusão foi posta por terra quando a família resolveu enviá-lo para uma fazenda no interior, onde ele só tinha contato com o silêncio. A solução foi afastá-lo de tudo e de todos na medida do possível. Durante esse período falava e ouvia normalmente, Interessante é que cantava canções de acalanto e a sua voz tinha uma sonoridade maravilhosa, 0 tumulto, os gritos, as conversas misturadas, as risadas, extinguiam instantaneamente a sua voz e a sua audição, mas voltavam perfeitas na substância do silêncio. Era por isso considerado um tipo estranho e enigmático. Ora, Gaspar deve estar incluído, sem saber, entre os raros que sofrem desse mesmo fenômeno. Daí o seu descontrole, a sua angústia, quando alguém a ao seu lado fala aos gritos ou dá estrondosas gargalhadas. Nota-se em Gaspar uma imediata transformação fisionômica, um ar desvairado, e não deve ser sem fundamentos que ele afirma a possibilidade de tornar-se um criminoso ao ouvir uma gargalhada.

Gaspar ouvia sem interromper Maurício, parecendo concordar com o diagnóstico do amigo.

Um grande silêncio envolveu a mesa dos três. Ao longe, rompendo a densidade da fumaça e o enjoativo cheiro de álcool que dominava o bar, o piano continuava tateado por mãos cansadas e indiferentes àquelas vidas gastando-se na madrugada. Vinda de um canto do bar, passou pela mesa dos três amigos uma mulher jovem. Não era bela nem feia. Era uma mulher de bar. Gaspar segurou-lhe o braço e indagou se estava sozinha. A mulher respondeu afirmativamente.

— Para onde vai?

— Para casa.

— Espere, vou com você.

Saíram os dois.

Num hotel barato, os outros hóspedes ouviram a porta de um quarto fechar-se. Depois o murmúrio de vozes do casal. De repente, uma gargalhada inundou o corredor do hotel. Outra gargalhada. Depois o silêncio absoluto.

Pela manhã, quando a arrumadeira iniciou o seu serviço, ao passar pelo quarto ocupado pelo casal da madrugada, viu pela porta entreaberta uma mulher nua, deitada na cama, tendo sobre a cabeça um travesseiro.

O seu corpo morto deixava fora do lençol um seio alvo e volumoso.

Texto extraído do livro "Contos de escritoras brasileiras", Martins Fontes - São Paulo, 2003, pág. 17, organizadoras: Lúcia Helena Vianna e Márcia Lígia Guidin.


Imagem Google 


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