sábado, 19 de janeiro de 2013

PORQUE HOJE É SÁBADO...



A PIMENTA E O RABO

Eduardo Lara Resende


Senhora síndica: Boa noite! Desculpe-me por este bilhete debaixo da porta de seu apartamento, mas trabalho na siderúrgica em horário noturno, e quando estou em casa estou descansando. Ou tentando descansar. E a senhora, por seu lado, está no seu trabalho. Sou o novo morador do 301, e gostaria de saber se é permitido aos moradores do edifício terem animais em seus apartamentos. Nada (ou quase nada) contra, mas é que no apartamento de cima tem um poodle que late sem parar o dia inteiro, e não me deixa dormir. Obrigado. Josef Leão. 

Senhor Leão, bom dia! Antes de tudo, seja bem-vindo. Nosso condomínio é pequeno (totalizamos apenas uma dúzia de apartamentos) mas somos compreensivos e tolerantes. Do contrário, já teríamos deflagrado a Terceira Guerra Mundial, o senhor não acha? Desculpe a brincadeira e (também) este bilhete-resposta debaixo de sua porta. Os animais – particularmente os cães – são nossos companheiros e nossos amigos dedicados. Sua presença, como o senhor deve saber, traz ao ser humano benefícios que, em alguns casos, nem a medicina consegue. Por isso a assembléia acaba de decidir pela permissão, a cada morador, para que mantenha um animal de pequeno porte em sua casa. A medida me deixou particularmente feliz, pois sou diretora da Associação Diogo Moedinha de Proteção aos Animais – uma instituição recém-fundada com o apoio de algumas amigas. Atenciosamente, Elvyran Coelho – Síndica. 

Senhora síndica: Boa noite! Volto à senhora a respeito de seu bilhete deixado há quinze dias sob a porta do apartamento onde estou residindo. Concordo com o benefício da convivência com animais de estimação, especialmente cães. Eu mesmo tenho dois na minha granja. Sem falar das cinzas de nossa finada cadelinha Marijuí, que ocupam pequena urna em lugar de destaque na sala da casa de minha irmã. Porém a questão, senhora síndica, é que nesse período parece que aumentou a quantidade de novos animais no prédio. Já me disseram que, dos doze apartamentos, pelo menos metade tem seu cãozinho. Não sei se isto corresponde à realidade, mas consigo identificar, nos meus períodos de insônia diurna, pelo menos quatro sons de latidos diferentes. Não pretendo deflagrar a Terceira Guerra Mundial, mas gostaria de poder contar ao menos com um pouco da compreensão e tolerância dispensadas aos nossos amiguinhos...
A propósito: Diogo Moedinha não é aquele mendigo que vive na praça do chafariz, no centro da cidade, e onde passa o dia dando banho em seus quinze cachorros? Obrigado. Josef Leão. 

Senhor Leão, boa tarde! Primeiro, meus sentimentos – e também em nome da ADMPA – pela perda de Marijuí. Temos amiguinhos para adoção, caso sua irmã e o senhor se interessem.
De fato o senhor tem razão, sr. Leão. A primeira campanha que fazemos, visando o aumento da adoção de cães abandonados, tem obtido muito boa resposta aqui em nossa comunidade. Mais dois moradores já se comprometeram a também adotarem, cada um, o seu cãozinho.
São tantos os motivos de aborrecimento com nossos semelhantes a cada dia, sr. Leão, que estou certa de que o senhor, que também ama os bichos como nós, certamente se beneficiará com o que, a princípio, pode parecer um incômodo, mas que nada mais é do que a manifestação natural de um ser vivo e amigo fiel em sua alegria e liberdade plenas. Confio portanto, sr. Leão, na sua compreensão e no seu bom senso. Sei que o senhor relevará qualquer incômodo passageiro.
Sobre o Diogo Moedinha: é ele mesmo. Quer dizer, era, porque ele amanheceu morto há quase um mês. Seus dezesseis cães (havia adotado mais um) rodeavam o corpo, e foi difícil para a polícia remover o pobre Diogo da área do chafariz, pois os cachorros não deixavam. O Moedinha morreu abandonado. Subnutrido e tuberculoso, coitado. O garçom do restaurante em frente contou que fez algumas tentativas de internar o pobre para tratamento, mas como o Moedinha ‘era só um morador de rua’, então não conseguiu nada.Desculpe mais uma vez, Sr. Leão, pela extensão deste bilhete que já virou carta. Não vou me alongar mais. Assim que receber o folheto institucional de nossa associação, terei prazer em enviar um exemplar ao senhor. Muito grata. Elvyran Coelho – Síndica. 

Senhora síndica: Boa noite. Agradeço a gentileza do folheto que deixou sob a porta de meu apartamento há pouco mais de um mês. Li tudo com atenção e fiquei satisfeito em saber que a associação que preside adotou os dezesseis cães do Moedinha – todos em ótimas condições de saúde, bem alimentados e limpos. Como, aliás, me pareceram os demais ‘amiguinhos’ hospedados na ADMPA, pelo que posso notar nas fotos que ilustram a peça.
Andei fora nos últimos dias porque decidi descansar um pouco na granja (são quase 70 quilômetros da siderúrgica até lá, 140 quilômetros de estrada diariamente), mas consegui um pouco mais de sossego, apesar do sacrifício.
Comunico à senhora que estou trazendo para o apartamento o meu ‘amiguinho’ Tóler (de ‘tolerância’). Não exatamente para acrescentar-me aos já dez vizinhos solidários com a espécie, mas pela solidão e tristeza do meu cachorro, depois da morte de sua companheira Xereta, na semana passada. Tão logo ele supere essa ‘fase’, pretendo levá-lo de volta. Ou, quem sabe, até deixá-lo aqui... Resolverei a seu tempo. Atenciosamente, Josef Leão. 

Senhor Leão, boa noite! Toquei a campainha aqui na sua casa, na esperança de encontrá-lo ainda, mas a faxineira me informou que o senhor tinha acabado de sair para a siderúrgica. A questão é que alguns moradores queixaram-se comigo dos longos e tristes ganidos que seu cachorro emite todas as noites, depois que o senhor sai para o trabalho. São uivos e ululados de dar dó, mas que também não deixam a gente, quer dizer, os vizinhos dormirem. Temos que achar uma solução, Sr. Leão, e se precisar posso indicar-lhe um veterinário que o oriente sobre o seu cachorro. Obrigada. Elvyran Coelho – Síndica.

Senhora síndica, boa noite! O doutor Paschoal Rebuch Caniballi, veterinário da associação que a senhora preside, é também o veterinário do Tóler. Tenho seguido as recomendações dele (que, aliás, viajou ontem para Tóquio, em férias), e ambos esperamos que meu ‘amiguinho’ se recupere em uma ou duas semanas. Acho, inclusive, que ele já responde melhor às brincadeiras e está se alimentando quase normalmente. Conto com sua compreensão e com a de todos daqui. Obrigado. Josef Leão (e Tóler). 

Senhor Josef Leão, bom dia! Transcorridos mais de vinte dias desde que o senhor trouxe para morar consigo o seu cachorro ‘em crise’, várias queixas tem-me sido apresentadas quanto, primeiro aos uivos, depois aos latidos desesperados do Tóler quando o senhor está no trabalho. Um ou dois vizinhos ‘intolerantes’ (desculpe o termo), reclamaram também de outros cães no prédio e, sendo assim, uma tumultuada assembléia extraordinária de moradores decidiu REVOGAR permissão dada anteriormente para que pudéssemos manter um animal de pequeno porte por apartamento. Como o senhor mesmo escreveu, não é nossa intenção deflagrar a Terceira Guerra Mundial. Assim sendo – e infelizmente – a comunidade de moradores deste Edifício Rochinha pede ao senhor a remoção de seu cachorro para outro local em, no máximo, 24 horas – prazo este também estendido aos demais moradores e aceito pelos mesmos, apesar dos protestos. Atenciosamente. Elvyran Coelho – Síndica. 

Senhora síndica, boa noite! Acato pacifica e prazerosamente a deliberação da assembléia de moradores deste Edifício Rochinha. As providências serão tomadas amanhã mesmo. Cordialmente. Josef Leão.
Em tempo: Tóler e eu agradecemos.


Imagem: Flickr, do álbum de Ed Yourdon

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