A PIMENTA E O RABO
Eduardo Lara
Resende
Senhora síndica: Boa
noite! Desculpe-me por este bilhete debaixo da porta de seu apartamento, mas
trabalho na siderúrgica em horário noturno, e quando estou em casa estou
descansando. Ou tentando descansar. E a senhora, por seu lado, está no seu
trabalho. Sou o novo morador do 301, e gostaria de saber se é permitido aos
moradores do edifício terem animais em seus apartamentos. Nada (ou quase nada)
contra, mas é que no apartamento de cima tem um poodle que late sem parar o dia
inteiro, e não me deixa dormir. Obrigado. Josef Leão.
Senhor Leão, bom dia! Antes de tudo, seja
bem-vindo. Nosso condomínio é pequeno (totalizamos apenas uma dúzia de
apartamentos) mas somos compreensivos e tolerantes. Do contrário, já teríamos deflagrado
a Terceira Guerra Mundial, o senhor não acha? Desculpe a brincadeira e (também)
este bilhete-resposta debaixo de sua porta. Os animais – particularmente os
cães – são nossos companheiros e nossos amigos dedicados. Sua presença, como o
senhor deve saber, traz ao ser humano benefícios que, em alguns casos, nem a
medicina consegue. Por isso a assembléia acaba de decidir pela permissão, a
cada morador, para que mantenha um animal de pequeno porte em sua casa. A
medida me deixou particularmente feliz, pois sou diretora da Associação Diogo
Moedinha de Proteção aos Animais – uma instituição recém-fundada com o apoio de
algumas amigas. Atenciosamente, Elvyran Coelho – Síndica.
Senhora síndica: Boa
noite! Volto à senhora a respeito de seu bilhete deixado há quinze dias sob a
porta do apartamento onde estou residindo. Concordo com o benefício da
convivência com animais de estimação, especialmente cães. Eu mesmo tenho dois
na minha granja. Sem falar das cinzas de nossa finada cadelinha Marijuí, que
ocupam pequena urna em lugar de destaque na sala da casa de minha irmã. Porém a
questão, senhora síndica, é que nesse período parece que aumentou a quantidade
de novos animais no prédio. Já me disseram que, dos doze apartamentos, pelo
menos metade tem seu cãozinho. Não sei se isto corresponde à realidade, mas
consigo identificar, nos meus períodos de insônia diurna, pelo menos quatro
sons de latidos diferentes. Não pretendo deflagrar a Terceira Guerra Mundial,
mas gostaria de poder contar ao menos com um pouco da compreensão e tolerância
dispensadas aos nossos amiguinhos...
A propósito: Diogo
Moedinha não é aquele mendigo que vive na praça do chafariz, no centro da
cidade, e onde passa o dia dando banho em seus quinze cachorros? Obrigado.
Josef Leão.
Senhor Leão, boa tarde! Primeiro, meus sentimentos
– e também em nome da ADMPA – pela perda de Marijuí. Temos amiguinhos para
adoção, caso sua irmã e o senhor se interessem.
De fato o senhor tem razão, sr. Leão. A primeira
campanha que fazemos, visando o aumento da adoção de cães abandonados, tem
obtido muito boa resposta aqui em nossa comunidade. Mais dois moradores já se
comprometeram a também adotarem, cada um, o seu cãozinho.
São tantos os motivos de aborrecimento com nossos
semelhantes a cada dia, sr. Leão, que estou certa de que o senhor, que também
ama os bichos como nós, certamente se beneficiará com o que, a princípio, pode
parecer um incômodo, mas que nada mais é do que a manifestação natural de um
ser vivo e amigo fiel em sua alegria e liberdade plenas. Confio portanto, sr.
Leão, na sua compreensão e no seu bom senso. Sei que o senhor relevará qualquer
incômodo passageiro.
Sobre o Diogo Moedinha: é ele mesmo. Quer dizer,
era, porque ele amanheceu morto há quase um mês. Seus dezesseis cães (havia
adotado mais um) rodeavam o corpo, e foi difícil para a polícia remover o pobre
Diogo da área do chafariz, pois os cachorros não deixavam. O Moedinha morreu
abandonado. Subnutrido e tuberculoso, coitado. O garçom do restaurante em
frente contou que fez algumas tentativas de internar o pobre para tratamento,
mas como o Moedinha ‘era só um morador de rua’, então não conseguiu
nada.Desculpe mais uma vez, Sr. Leão, pela extensão deste bilhete que já virou
carta. Não vou me alongar mais. Assim que receber o folheto institucional de
nossa associação, terei prazer em enviar um exemplar ao senhor. Muito grata.
Elvyran Coelho – Síndica.
Senhora síndica: Boa
noite. Agradeço a gentileza do folheto que deixou sob a porta de meu
apartamento há pouco mais de um mês. Li tudo com atenção e fiquei satisfeito em
saber que a associação que preside adotou os dezesseis cães do Moedinha – todos
em ótimas condições de saúde, bem alimentados e limpos. Como, aliás, me
pareceram os demais ‘amiguinhos’ hospedados na ADMPA, pelo que posso notar nas
fotos que ilustram a peça.
Andei fora nos últimos
dias porque decidi descansar um pouco na granja (são quase 70 quilômetros da
siderúrgica até lá, 140 quilômetros de estrada diariamente), mas consegui um
pouco mais de sossego, apesar do sacrifício.
Comunico à senhora que
estou trazendo para o apartamento o meu ‘amiguinho’ Tóler (de ‘tolerância’).
Não exatamente para acrescentar-me aos já dez vizinhos solidários com a
espécie, mas pela solidão e tristeza do meu cachorro, depois da morte de sua
companheira Xereta, na semana passada. Tão logo ele supere essa ‘fase’,
pretendo levá-lo de volta. Ou, quem sabe, até deixá-lo aqui... Resolverei a seu
tempo. Atenciosamente, Josef Leão.
Senhor Leão, boa noite! Toquei a campainha aqui na
sua casa, na esperança de encontrá-lo ainda, mas a faxineira me informou que o
senhor tinha acabado de sair para a siderúrgica. A questão é que alguns
moradores queixaram-se comigo dos longos e tristes ganidos que seu cachorro
emite todas as noites, depois que o senhor sai para o trabalho. São uivos e
ululados de dar dó, mas que também não deixam a gente, quer dizer, os vizinhos
dormirem. Temos que achar uma solução, Sr. Leão, e se precisar posso
indicar-lhe um veterinário que o oriente sobre o seu cachorro. Obrigada.
Elvyran Coelho – Síndica.
Senhora síndica, boa
noite! O doutor Paschoal Rebuch Caniballi, veterinário da associação que a
senhora preside, é também o veterinário do Tóler. Tenho seguido as
recomendações dele (que, aliás, viajou ontem para Tóquio, em férias), e ambos esperamos
que meu ‘amiguinho’ se recupere em uma ou duas semanas. Acho, inclusive, que
ele já responde melhor às brincadeiras e está se alimentando quase normalmente.
Conto com sua compreensão e com a de todos daqui. Obrigado. Josef Leão (e
Tóler).
Senhor Josef Leão, bom dia! Transcorridos mais de
vinte dias desde que o senhor trouxe para morar consigo o seu cachorro ‘em
crise’, várias queixas tem-me sido apresentadas quanto, primeiro aos uivos,
depois aos latidos desesperados do Tóler quando o senhor está no trabalho. Um
ou dois vizinhos ‘intolerantes’ (desculpe o termo), reclamaram também de outros
cães no prédio e, sendo assim, uma tumultuada assembléia extraordinária de
moradores decidiu REVOGAR permissão dada anteriormente para que pudéssemos
manter um animal de pequeno porte por apartamento. Como o senhor mesmo
escreveu, não é nossa intenção deflagrar a Terceira Guerra Mundial. Assim sendo
– e infelizmente – a comunidade de moradores deste Edifício Rochinha pede ao
senhor a remoção de seu cachorro para outro local em, no máximo, 24 horas –
prazo este também estendido aos demais moradores e aceito pelos mesmos, apesar
dos protestos. Atenciosamente. Elvyran Coelho – Síndica.
Senhora síndica, boa
noite! Acato pacifica e prazerosamente a deliberação da assembléia de moradores
deste Edifício Rochinha. As providências serão tomadas amanhã mesmo.
Cordialmente. Josef Leão.
Em tempo: Tóler e eu
agradecemos.
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