UMA ENCOMENDA EM SHINJUKU-KU
Artur
Xexéo
A Copa do Mundo nunca foi em Tóquio. Mas eu fui. A
equipe toda viajou para Yokohama, onde se realizaria a final de 2002 entre a
seleção brasileira e a da Alemanha. Eu ganhei de presente do jornal uma semana
em Tóquio. A viagem de trem a Yokohama não demorava nem uma hora. E, em Tóquio,
eu teria mais assunto para a minha coluna. Além disso, eu poderia cumprir a
única tarefa que tinha levado de casa: comprar na livraria Books Rose
Shirogane-no-Hana,uma revista em quadrinhos de Gengoroh Tagame. Tinha levado até
o endereço. Não deveria ser difícil .Só tinha me esquecido de que, em Tóquio,
não há endereços menos endereços do jeito que a gente conhece. As ruas não têm
nome. E, para um ocidental, encontrar uma livraria em Tóquio, mesmo com o
endereço na mão, pode se tomar uma missão difícil ou mesmo uma missão
impossível.
A experiência em outras cidades asiáticas já havia
demonstrado que a tarefa poderia ser complicada. Em Ulsan, quis ir na
loja oficial da Copa do Mundo, onde eram vendidas todas as bugigangas com o
logotipo do campeonato mundial de futebol. Sabe qual era o endereço? Pertinho
do Hotel Koreana. Não adiantava tentar uma direção mais específica. Qualquer
anúncio da loja, qualquer informação oficial, qualquer morador da cidade dizia
a mesma coisa: a loja ficava pertinho do Hotel Koreana. Um dia, peguei um táxi
e, cheio de preocupação, repeti as palavras mágicas: Hotel Koreana. O taxista
nem se perturbou. Sem insegurança alguma me deixou em frente à portaria do
hotel. Logo achei a loja que procurava. Ficava pertinho.1'
Assim que cheguei a Tóquio, comprei um guia do
rnetrô que trazia na contracapa o anúncio de um restaurante especializado em
tempurá. Sabe qual era o endereço? "Entre a loja de departamentos
Mitsukoshi e a loja de departamentos Matsuzakaya." Não dava para ser mais
específico? Claro. Ficava no bairro de Ginza. Só isso? Só isso. Em Ginza, entre
a Mitsukoshi
e a Matsuzakaya. Não tinha como errar.
e a Matsuzakaya. Não tinha como errar.
Eu sei que eles possuem uma cultura milenar, e,
durante toda a minha estada em Tóquio, não vi um só japonês com cara de
perdido. Mas, para quem passou a vida inteira colecionando nomes de ruas,
números de prédios e códigos de endereçamento postal, encontrar um endereço na
Ásia é uma questão perturbadora.
A minha livraria tinha um endereço misterioso: 2,14,11
Shinjuku, Shinjuku-ku. Rapidamente descobri que Shinjuku é urn bairro, e que
"ku" é bairro em japonês. Não tinha a menor noção de por que Shin
juku aparecia duas vezes no endereço. Mas tinha certeza de que a tal livraria
ficava no bairro de Shinjuku. Ou em Shinjuku. Não era difícil chegar lá de
metrô. Existe uma Estação Shinjuku. O problema é que o bairro é enorme. Imagine
o que é descer na Estação Ipanema, no Rio, ou na Estação Vila Madalena, em São
Paulo, e sair procurando uma livraria com a única informação de que ela fica em
Ipanema ou na Vila Madalena. Ah, sem falar português, é claro. Passei um dia
inteiro rodando feito um peru embriagado pelas ruas de Shinjuku. Não havia
placas. Não havia números nos prédios. Que diabos podia ser aquele 2, 14, 11?
Descobri a área que concentra o maior número de cinemas da cidade. Aqueles
cinemões antigos, com entrada na calçada e cartazes gigantescos dos filmes em
exibição. Logo na saída da estação, me vi numa praça lotada de moradores do
bairro que acompanhavam num telão de alta definição as corridas de cavalo. Numa
esquina, experimentei um sushi bar bem baratinho e com peixes de ótima
qualidade. Havia um quarteirão inteiro com o que parecia ser a região de clubes
pornôs mais quentes do Japão. Mas nem passei perto da misteriosa livraria. Para
falar a verdade, não passei perto de livraria alguma. Talvez houvesse um
quarteirão só de livrarias em Shinjuku. Mas onde?
Liguei para o Brasil para expor o meu fracasso
e confessar que estava desistindo da missão. Em troca, recebi mais
uma dica: o telefone da livraria. Percebi que não seria fácil me
livrar da tarefa. Liguei para a loja e pedi uma indicação mais precisa de como
chegar lá.
— É fácil — respondeu-me um balconista. — É só
sair da Estação de Shinjuku pelo portão Leste e andar 15 minutos em direção à
loja Isetan.
— ...
— É só isso.
— Vem cá, em 15 minutos, um jovem de vinte anos
percorre uma distância muito maior do que a percorrida por um velho de oitenta
anos. Eu estou no meio desse caminho. Será que meus 15 minutos são suficientes
para chegar à loja?
— Ah, então conta vinte minutos.
Desisti. Devia haver uma maneira melhor de se
chegar lá. 0 pior era a dica de sair pelo portão Leste. Isso significava que
deveria ter também um portão Oeste. E talvez um portão Sul e um portão Norte.
Shinjuku-ku era muito maior do que eu imaginava. Será muito difícil para a
prefeitura de Tóquio batizar as ruas da cidade? Garanto que a cidade iria
economizar papel. Gasta-se muito papel em Tóquio. Para desenhar mapas. Não há
endereço em Tóquio sem mapa. Nos anúncios de jornal, nos cartões de visita, nos
folhetos de propaganda, há sempre um mapinha indicando como se chega lá. Há
também aqueles três números enigmáticos como no endereço da livraria que eu não
estava achando. Eles tinham que servir para alguma coisa.
Paulo Coelho, que algumas crônicas atrás tinha
sido meu assessor especial para malas na Ásia, tornou-se imediatamente meu
assessor especial para decifrar endereços em Tóquio. E mandou um e-mail:
"A livraria deve se chamar Kinokuniya, porque
tem todos os livros do mundo. E tem uma filial em Shin-juku. Portanto: esquece
aquela praça do telão, olha em volta, vai ver um miniEmpire State Building (na
verdade, sede da DoCoMo); caminhe naquela direção, vencendo todos os obstáculos;
irá dar em um rio de aço, ou seja, um lugar onde correm trens e metrôs, no
lugar de água; de um lado, tem uma série de cafés, do outro, uma espécie de
píer para admirarmos o rio de aço; vá (ou continue) até o final do píer. Ali
está a livraria."
Tive que decepcionar o mago, mas não era a
Kinokuniya que eu procurava. Como já expliquei, era a Books Rose. Mas ali
existia ainda uma livraria com todos os livros do mundo? Tinha que achar essa
também. E um miniEmpire State Building? Como é que eu tinha perdido isso? E
mais um rio de aço? Pelo jeito, eu nunca mais iria sair de Shinjuku-ku. Mesmo
que não encontrasse a minha livraria.
Em dois dias de pesquisas, descobri que o morador
de Tóquio se guia pela localização de estações de trem, lojas de departamento, praças
e coisas assim. Mas aqueles três números misteriosos deveriam servir para, pelo
menos, facilitar a vida dos carteiros. Venci pela insistência. Matei a
charada.
Algumas esquinas de Tóquio têm grandes cartazes
que mapeiam as ruas do bairro. Nesses mapas, a gente percebe que 0 bairro é
dividido em regiões numeradas. Essa regiões são divididas em quarteirões também
numerados. E cada quarteirão, enfim, tem seus edifícios numerados (só os
números dos prédios não aparecem nos mapas). Resumindo: com a ajuda do endereço
— 2,14, 11 Shinjuku, Shinjuku-ku — a minha livraria podia ser localizada no
mapa. Ela ficava no 11º prédio, do quarteirão 14, na região 2 de Shinjuku. Ufa!
Copiei num papel informações do tipo "seguir em frente, atravessar cinco
ruas, virar à direita, andar mais dois quarteirões, contar 11 prédios"...
achei!
E aí começou outro problema. Na verdade, o tal
Shirogane-no-Hana, de Gengoroh Tagame,não era uma revista em quadrinhos, mas um
livro. Para ser mais específico, um livro em três volumes. Sendo mais
detalhista ainda, cada volume tinha 299 páginas. O peso da minha mala aumentou
consideravelmente. Mas eu voltei para casa com a encomenda.
O texto acima foi
extraído do livro "O Torcedor Acidental", editora Rocco, 2010 - pág.
41.
Imagem Google: os três volumes do livro Shirogane-no-Hana
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