SILÊNCIO, HOSPITAL
Chico Anysio
Nos
primeiros tempos de casamento ele aparentava uma saúde de ferro mas, de uns
anos pra cá, mostrava-se tão frágil, tão suscetível às doenças, que Dona
Belinha, sua esposa, intranqüilizava-se cada vez mais.
—
Qualquer coisinha o Pirilo hospitaliza-se — choramingava às amigas. — Tão
frágil, tão doentinho...
E
assim era. Por um simples sintoma de gripe ou resfriado, o Pirilo pegava um
pijama, escova de dentes, pente e chinelos, metia-os numa maleta branca e hospitalizava-se.
—
O que é que você tem, Pirilo? — perguntava a esposa preocupada, vendo o marido
fazer a mala para mais uma ida à casa de saúde.
—
Nada, minha velha.
—
E se não tem nada, por que você vai para o hospital, Pirilo? — insistia Dona
Belinha, mais preocupada do que nunca.
—
Com saúde não se facilita. Não tenho nada agora, mas estou esperando uma gripe
de uma hora para outra.
E
se internava por quatro, cinco dias. Proibia as visitas e não aceitava flores
ou maçãs. "Se eu morrer, não quero ninguém no velório. Na doença e na
morte, longe os parentes", era a teoria que defendia e a que a família
obedecia.
—
Chama-se isso de hipocondria — explicou um médico a quem Dona Belinha
secretamente visitou:
—
Hipocondria?
—
É uma ansiedade habitual relativa à própria saúde — decifrava o médico. — É
muito comum, um caso assim. Há pessoas que não vivem sem tomar remédio. Seu
marido é um caso desses. Só que em estado mais grave, porque ele chega a ir
para o hospital. Mas não se preocupe. Os hipocondríacos são os que vivem mais.
—
Isso pega, doutor? — inquiriu Dona Belinha, quase desejando que sim, para poder
acompanhar o marido, de quem sentia muita falta, durante os dias de nosocômio.
—
Pegar, não digo, mas quem convive com um hipocondríaco, sendo de espírito
fraco, pode-se contagiar por esta mania.
E
ela muito rezava e pedia que lhe fosse dado este contágio.
—
Belinha, traz a mala.
—
Pra onde você vai, Pirilo?
—
Vou-me hospitalizar.
—
O que é que você está sentindo?
—
Hoje, fazendo as unhas, tirei sangue da cutícula. Isso pode infeccionar, dar
tétano, gangrenar, sei lá. Com saúde não se brinca.
E,
de mala branca na mão e infalível chapéu preto à cabeça, lá ia o Pirilo para o
Hospital dos Estrangeiros, onde tinha conta corrente (pagava por semestre) e
apartamento quase fixo.
—
O apartamento de sempre, Sr. Pirilo? perguntava a enfermeira, como se aquilo
fosse um hotel.
—
Não. Desta vez quero um no terceiro andar, com vista para a encosta.
E
por uma semana, muitas vezes, curtia o seu hospitalzinho, de camisola e tudo,
com exames de pressão arterial, termômetros sob a axila, colheita de urina,
sangue, fezes, escarro, etc. Uma semana depois, sentindo-se recuperado, voltava
ao seio da família, dizendo-se outro homem.
Ao
mesmo tempo em que os filhos cresciam, desenvolvia-se a hipocondria do Pirilo,
que se internou pelos motivos mais burlescos, de tão banais: furúnculo, cisco
no olho, mau jeito no braço, aerofagia, topada.
A
conselho médico a mulher nem tocava mais no assunto, tentando meter na cabeça
do marido que ele não sofria de coisa alguma ("Isso pode piorar, porque
ele fica irritado e..."). Ao ver Pirilo chegar e entrar em casa sem tirar
o chapéu preto, a mulher já sabia que era caso de hospital. E, por conta
própria (disso o médico não teve culpa), já até colaborava com a hipocondria do
marido.
—
Não está passando bem, Pirilo?
—
Ainda bem que você notou. Hoje arrotei duas vezes, depois de tomar uma
Coca-Cola. Faz a mala.
E
o pijama, com pente, chinelo e escova de dentes, era enfiado na mala branca que
Pirilo conduzia ao Hospital dos Estrangeiros, onde era mais conhecido do que
muitos dos médicos que lá operavam ou davam plantão.
—
Terceiro andar, para a encosta?
—
Segundo andar, de frente.
—
214 — informava a enfermeira, dando-lhe a chave.
Tantas
foram as vezes que Pirilo se internou que, ultimamente, já ia sozinho da
portaria para o quarto. Ir uma enfermeira com ele para quê, se ele conhecia os
corredores e apartamentos mais do que a maioria delas? De hospital, ele dava
aula. E era um custo para aceitar a alta do médico.
—
Pode ir embora hoje, Sr. Pirilo.
—
De jeito nenhum. Antes de quinta-feira ninguém me tira daqui.
—
Mas o senhor já está bom. Os gases...
—
Os gases acabaram, mas... e essa unhazinha?
—
Que tem a unha? — perguntava o médico, segurando-lhe a falange do pé que Pirilo
lhe exibia.
—
Repare na unha, veja bem.
—
Está bem.
—
Ora, doutor, enganar ao Pirilinho? A unha está encrava, não encrava. Antes de
quinta-feira eu não saio, a não ser que a unha se resolva.
De
tanto Pirilo se ausentar para os hospitais, apareceu um arquiteto desquitado
com ótimos planos e projetos para Dona Belinha com os quais ela concordou, de
tanta distância que já sentia do marido hipocondríaco.
Saiu
ganhando, pois amava agora um homem formado, enquanto Pirilo continuava amante
de uma ajudante de enfermeira do Hospital dos Estrangeiros, que um dia dava
plantão no terceiro andar, de frente para a encosta, no outro dia no segundo
andar, de frente para a frente...
Os
hipocondríacos merecem cuidados!
Texto extraído do livro “O batizado da vaca”,
Editora Círculo do Livro – Rio de Janeiro, 1972, pág. 156.
Imagem Google
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