Faz 12 anos hoje, 25/01/2011, que o meu único irmão, Ademar ou Deco, como eu o chamava quando era pequena, suicidou-se ingerindo veneno de rato com leite condensado, que ele adorava.
Ele nasceu em 1954, exatos 1 ano e 9 meses depois de mim, em Curitiba, onde papai foi trabalhar no Banco Lar Brasileiro. Nós mudamos de João Pessoa para lá no final de 1953, ficamos por 3 anos e depois fomos para o Recife, onde moramos até 2007.
E eu acho que errei quando disse que me descobri ciumenta aos 23 anos. Que nada! Eu sou ciumenta desde que nasci. O meu irmão sofreu que só comigo quando era recém-nascido. Mamãe contava que via umas manchas roxas nas unhas dele, bem na parte da cutícula, mas não sabia o que era. Um dia ela entrou no quarto e me encontrou dentro do berço dele, em pé, mordendo os dedinhos do bichinho. Tudo isso porque as atenções agora estavam voltadas para ele, que tinha acabado de nascer e não mais para mim, que antes reinava sozinha. Ainda bem que mamãe descobriu e me vigiou para não repetir a tortura. Tadinho...
Ele era uma criança linda! Lourinho, lourinho, com olhos bem azuis, mais que os meus e tenho certeza que foi uma criança feliz. Estudava, brincava, tinha amiguinhos e brinquedos simples, como os da época e que as posses do meu pai permitiam comprar. E os meus pais sempre foram muito legais conosco. Nunca discriminaram um em favor do outro. Se papai ganhasse um bombom no trabalho, não comia e ainda comprava outro igual para levar um para cada filho. Estudávamos na mesma escola e sempre particulares, enquanto fazíamos o primário. No ginasial fomos para escolas públicas e só uma vez ele passou um ano sem estudar porque mamãe só conseguiu matrícula para mim, mas no ano seguinte ele voltou para a escola, coisa que nunca gostou.
O que ele gostava mesmo era de brincar e de desmontar e remontar seus brinquedos. E minhas bonecas, coitadas, viravam destroços, pois ele quebrava todas. E como sempre foi muito traquina, apanhou de papai muito mais do que eu. Depois que cresceu, essa curiosidade em saber como funcionavam as coisas e a facilidade de aprender, fez com que não pagasse por muitos serviços que ele mesmo fazia, inclusive consertos no carro.
Eu e ele com nosso avô Odilon |
O medo que ele tinha de dentista era fora do comum. Me lembro dele chorando tanto, mas tanto toda vez que ia à nossa dentista, que era uma luta para cuidar dos seus dentes. Uma vez, quando adolescente, o dentista para o qual fomos desistiu de examiná-lo porque ele começou a suar, a ficar pálido e frio, tanto que o profissional teve medo que desmaiasse e mandou-o descer da cadeira. Quando rapaz teve que perder um pouco desse medo, pois se não tratasse os dentes e os perdesse, as moças não iam querer namorá-lo. Pelo menos foi um bom motivo para se cuidar.
Como não gostava de estudar, mamãe colocou-o para trabalhar aos 15 anos, com um despachante do Porto do Recife e ele se deu muito bem nesse trabalho. Era muito trabalhador e não enjeitava serviço. Também era muito inteligente e se tivesse estudado mais tinha conseguido um emprego melhor. Aprendeu inglês lidando com os gringos no porto e com as traduções que o chefe dele, que era tradutor, fazia e ele transcrevia na máquina datilográfica. Uma vez o vi conversando em inglês com o tripulante de um navio e se expressava tão bem que parecia ter estudado a língua. E mesmo só tendo terminado o ginasial, assimilou bem as lições, pois escrevia em bom português. Descobri isso quando li as cartas de despedida que deixou e outras que estavam no computador dele.
Nós brigávamos muito quando crianças e, adultos, não foi muito diferente. Nossos temperamentos e modo de pensar e agir eram bastante divergentes. Ele, apesar de ser uma pessoa boa, de gostar de ajudar os outros, não dava muita importância à família (nossos pais e eu). Era o jeito dele. Não era maldade, era displicência mesmo. Eu, ao contrário, sempre fui o esteio, a que estava lá para o que desse e viesse, chovesse ou fizesse sol. Essa característica dele me irritava profundamente e nós brigávamos. Eu queria que ele fosse mais atencioso com nossos pais e fosse mais presente nas questões familiares, mas não era assim. Talvez eu tivesse uma parcela de culpa nisso, já que sempre tomei para mim as grandes responsabilidades da família, mas alguém precisava ajudar meu pai com essas responsabilidades e eu era a mais velha.
Eu, ele, os filhos e papai |
Foi casado duas vezes e no primeiro casamento teve um casal de filhos, Michele e Thiago. O segundo casamento foi conturbado. Brigavam muito e quando ele fez a bobagem de morrer, estavam separados. Ele queria que ela voltasse, ela não quis e ele entrou em depressão e suicidou-se. Antes pediu que ela fosse vê-lo, exatamente no dia em que morreu. Não sei se queria matá-la também (encontramos uma seringa enorme, cheia de um líquido preto, junto a um colchonete, no chão de outro quarto) ou se era para que ela sentisse remorso por vê-lo morto. E foi ela quem o encontrou.
Os três filhos |
Quando ele morreu, estávamos meio que brigados e eu não sabia que estava tão deprimido porque ele nunca foi de se abrir com a família. Os amigos sabiam, pois no dia 31 de dezembro já tinha tentado se matar, mas nenhum deles teve a coragem de chegar para alguém da família e contar. Essa primeira tentativa foi um pedido de ajuda, que ele não teve...
Meu irmão era uma pessoa alegre e de bem com a vida, pelo menos assim parecia. Adorava fazer brincadeiras com as pessoas e gostava de conversar. Os filhos da cunhada, eram loucos por ele, pois os levava para passear e cuidava deles como se também fossem seus filhos. Por ele ser assim, jamais pude imaginar que faria algo desse tipo.
Os filhos à esquerda e os gêmeos da cunhada à direita |
O suicídio dele me abalou muito, por anos, pois me culpava por não tê-lo ajudado. Hoje, passado todo esse tempo e depois de ter procurado ajuda terapêutica, não penso mais assim. Não me culpo mais. Eu e meu pai ainda sentimos muito a falta dele e o que fez, mas seguimos em frente, porque não nos restou mais nada a fazer.
E os filhos também sentiram muito, principalmente o menino, filho do casamento e com quem eu convivia, que era louco, apaixonado pelo pai. No velório e no enterro ele não pronunciou uma única palavra e nem derramou uma lágrima sequer. A irmã chorou, gritou, mas ele não. Guardou para si toda a dor que estava sentindo. E nem consigo quantificar o tamanho dessa dor nem o que se passava na cabeça dele. Deve ter sido um desgosto grande demais saber que o pai não pensou nele (logo ele, que o amava tanto) e matou-se por causa de uma decepção amorosa. Isso foi muito para um garoto de 13 anos que nunca falou sobre o assunto. Só uma única vez, algum tempo depois e quando estava junto com o outro irmão, me perguntou o porquê do pai ter feito aquilo. Após ouvir as minhas singelas explicações, calou-se para sempre! Anos mais tarde, vimos com tristeza o que essa perda causou a ele, mas hoje já é um rapaz de 24 anos e, como o pai, é alegre, brincalhão e não enjeita trabalho. Também já é pai de uma menininha recém-nascida e segue tocando a vida. A irmã passou melhor pela tragédia e recuperou-se mais rápido e melhor que ele.
Thiago e Michele com papai em 27/12/2010 |
18 comentários:
Do meu amigo Ivaldo Gomes, por email:
Fátima,
Obrigado por dividir comigo suas vivências. Sempre se apreende alguma coisa. O bom dessa vida é que todos vivemos nossas próprias histórias. Mesmo vivendo juntos um mesmo tempo. Mas sempre acontece de um jeito muito pessoal. Uma vez li uma frase de Mário Quintana (acho que foi dele), que fiquei chocado com o teor de verdade: 'o danado na vida da gente, é que ninguém tem nada a ver com isso'. Dói saber que no fundo, no fundo somos sozinhos. Por mais acompanhado que estejamos. Todos nós temos nossas dores e só nós sabemos o seu tamanho. Mas a vida existe pra ser vivida e a gente não pode viver nada pelos outros e nem tão pouco pelas decisões que os outros tomam sobre si. Claro que gostaríamos que as coisas fossem diferentes. Mas acredite, tem coisas, que são como são. Então só nos resta aceitá-las como fato consumado e viver com elas. Toda dor um dia passa.
Um abraço,
Ivaldo Gomes
Amigo Ivaldo,
Agradeço pela força.
E o que você disse é verdade: só nós sabemos o tamanho da nossa dor e o quanto ela nos afeta.
Um grande abraço!
De Fátima Conti, minha companheira no Grupo Mistura Fina:
Usando o lado oposto
Deus costuma usar a solidão
para nos ensinar sobre a convivência.
Às vezes, usa a raiva,
para que possamos compreender o infinito valor da paz.
Outras vezes usa o tédio,
quando quer nos mostrar
a importância da aventura e do abandono.
Deus costuma usar o silêncio
para nos ensinar sobre a responsabilidade do que dizemos.
Às vezes usa o cansaço,
para que possamos compreender o valor do despertar.
Outras vezes usa doença,
quando quer nos mostrar a importância da saúde.
Deus costuma usar o fogo,
para nos ensinar sobre água.
Às vezes, usa a terra,
para que possamos compreender o valor do ar.
Outras vezes usa a morte,
quando quer nos mostrar a importância da vida.
Texto atribuído a Fernando Pessoa
Fonte: http://fabelem.freevar.com/cartao/out-tsun.html
Belíssimo esse texto atribuído a Fernando Pessoa.
Fá, agradeço o carinho.
Beijos!
Da minha querida ex-colega da Sudene, Elziclécia, por email:
Querida Fátima li os textos escritos sobre sua mãe e irmão e na sua simplicidade está a delícia da leitura e expressa todo sentimento de uma vida.
Parabéns por você ser a pessoa que é.
Que Deus esteja sempre presente na vida de vocês.
Paz e bem!
Elzi
Elzi,
Obrigada pelo carinho.
Você sempre tem uma palavra amiga e confortadora para todos.
Beijos!
Da minha amiga e ex-colega da Sudene, Carmen Lúcia Couto:
...é uma pena mesmo. Quando perdemos um ente querido parece que o tempo não passa.
Em maio, fará 21 anos da morte de minha mãe. A falta com o tempo é amenizada (um pouco!!!), porém a saudade é e será eterna.
bjos
Carmen,
A saudade não morre nunca, não importa o tempo que passou da partida da pessoa.
Mas isso é o melhor, porque saudade boa é o que nos conforta para essa falta sofrida.
Agradeço o carinho.
Beijos!
Da minha querida amiga, Madalena Andrade, uma das batalhadoras do GAAPAC - Grupo de Apoio e Auto-ajuda para Pacientes de Câncer:
Oi Fátima!!!!
Imagino o quanto foi doloroso para você, ter vivenciado esta morte trágica em pessoa da família!!!!
Eu que perdi uma irmã assassinada há mais de 20 anos, posso imaginar o tamanho da dor e também falar da experiência de ter vivido o "sentimento de culpa" por muito tempo, como se eu pudesse de alguma forma, ter evitado a tragédia!!!
Só que depois de muitos anos fui me afastando deste sentimento e, para que me curasse dessa angústia, foi necessário uma terapia e o aprendizado no próprio GAAPAC.
Bjos
Madá
Madá,
Você sabia que não tinha culpa alguma pelo que aconteceu à sua irmã, mas sentiu como se tivesse. Imagine então, uma pessoa tão próxima a nós que se suicida. Parece que foi você quem matou aquela pessoa. A sensação de culpa leva a isso. Mas um dia passa. Ainda bem...
E muita força para continuar o seu belo trabalho no GAAPAC.
Beijos, querida!
Seu irmão também passou pela minha vida, até me ajudando apesar da pouca intimidade, como no dia que tive 2 pneus do carro furados e ele foi me socorrer, fez tudo sozinho, impagável! Uma prova do bom coração dele.
E são estas as lembranças que devem ficar...
Mari,
Não me lembro de jeito nenhum disso.
Ele era assim, gostava de ajudar as pessoas. Que lembrança boa, mulher!
Beijos!
Da minha amiga e ex-colega da Sudene, que mora em MG, Carla Oliveira:
Fátima,
Quando você vai contando assim a história de sua família, dá pra sentir que cada palavra vai saindo lá de dentro, como um desabafo, e isso faz com que seu texto transborde emoção a cada linha.
Muito bom ir conhecendo cada vez mais um pouquinho de você, através dessas histórias. Nem sempre são histórias felizes, mas disso também é feita a vida, né?
Um beijão,
Carla
Carlinha,
Nós nos conhecemos pouco, realmente. Trabalhávamos na Sudene, mas em departamentos diferentes e não tivemos a oportunidade de convivermos juntas.
E eu lembrei agora que passamos a ter um contato um pouco maior justamente por algo ligado ao meu irmão.
O filho dele fora do casamento, que tinha 17 anos nessa época, engravidou a namorada de 14 ou 15 anos, não lembro bem. Eu pedi às pessoas amigas, via email, roupinhas usadas de bebê para ajudar no enxoval. Você doou as roupinhas de Arthur, seu filhote querido que hoje já tem 9 anos, todas em excelente estado, além de outras novinhas. Depois você foi embora para MG, mas, após essa doação, nós passamos a ter um contato um pouco maior e a conversarmos via email, sobre algumas coisas das nossas vidas. Agora, com esses desabafos, você vai sabendo um pouco mais sobre mim.
Os caminhos da vida nem sempre são ladeados de flores, também há pedras, muitas pedras, mas ela é boa por isso.
Beijos e obrigada pelo carinho e amizade.
Fatita, gostei do teu blog e adorei teu texto. ;) Gosto quando vejo sentimento por trás das letras. Espero que a vida se encarregue dessa dor nas pessoas que amam seu irmão. Abs!
Valdívia,
Obrigada pela visita e pelas palavras elogiosas.
Agradeço mais ainda pela solidariedade.
E também gostei muito do seu blog.
Abraços!
È amiga, nunca sabemos o que a vida nos guarda... Mas seja l[a o que for "devemos sempre estar preparadas", mas nem sempre é assim...
Pois é, Judite, poucos estão preparados para a morte. E com uma morte dessas, aí é que fica mais difícil aceitar. Só mesmo o tempo ajuda.
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