Flávia de Gusmão - Foto: Bobby Fabisak/Cortesia |
O pré-idoso é um perseguido
Flávia de Gusmão
Todo cuidado é pouco ao criticar aqueles segmentos considerados minoritários na sociedade: mulheres, por exemplo, podem até não ser minoria em quantidade, mas seguramente o são no que diz respeito ao exercício do poder, nas suas mais variadas esferas. O mesmo se aplica aos gays, aos afrodescendentes, aos nordestinos (no Sul e Sudeste), aos indígenas, aos idosos. E por falar nesses últimos, o que ninguém se preocupa em mapear é justamente a camada da população que se localiza na faixa imediatamente anterior àquela delimitada pelos 60 anos, e que sofre um preconceito ainda mais brutal, justamente porque não tem quem os defenda. Os velhinhos de carteirinha, aliás, estão cada dia mais aguerridos na defesa dos seus direitos. Um dia desses, estava a trabalho no Rio Grande do Sul, já tomando café para sair para mais um dia de reportagem, quando, de repente, invade o salão uma turma da terceira idade, e da pesada. Era sexta-feira, o hotel, que até então tinha estado bastante tranquilo, viu, de repente, faltar cadeiras e mesas que atendessem à necessidade de todos fazerem o desjejum na mesma hora. Era isso o que o chef dos garçons tentava explicar aos idosos que, a esta altura, já começavam a ameaçar um linchamento do pobre porta-voz, que como todo mensageiro não merecia pancada. Os senhorzinhos já brandiam a “capanga”, que é o nome que se dá àquela carteira que parece uma nécessaire com alça, e as senhorinhas ameaçavam confiscar todos os pães e bolos sobre a mesa, algumas já abrindo a bolsa para cumprir a promessa.
Do meu canto, na condição de pré-idosa, com apenas 11 anos me separando do documento oficial que fará de mim uma tirana na mesma proporção, já me preparava para a batalha. Eu queria ver aquelas adoráveis criaturas – algumas com menos cabelos brancos do que eu e certamente com um portfólio de excessos de toda ordem bem menos sobrecarregado que o meu – me separarem do meu mamão papaya, suco de laranja, uma fatia de pão integral e ovo mexido. Itens que eu consumo na mais rigorosa ordem citada, com todos os requintes de precisão e metodologia observados por aqueles que se avizinham do meio século vivido. Não foi preciso tanto, os ânimos serenaram, a turba foi acomodada e a vida seguiu. Vitória da terceira idade que tem todo o meu apoio.
Não existe pré-mulher, pré-nordestino ou pré-afrodescendente. Sequer existe o pré-gay, que é um estado que muitos confundem com aquele do homossexual que ainda não saiu do armário, em outras palavras, aquele não se assumiu, justamente temendo represálias dessa “maioria”. No entanto, pré-idoso é, sim, uma condição tão perceptível quanto os famigerados retoques com henna ou xampus tonalizantes. E esta categoria, à qual pertenço, sofre como uma condenada sem, contudo, ter um sentimento de união e irmandade que lhe conduza à vitória, como esse que moveu, naquele momento breakfast, os idosos oficiais. Os pré-idosos são perseguidos por estarem no Facebook, e lá encontrarem os filhos e os amigos dos filhos. E esta é a ponta do iceberg. Já cansei de ver as novinhas aqui da redação se vangloriarem das lições de etiqueta que ministraram aos seus pré-idosos pais. Se um deles ameaçar entrar no Twitter acho que é caso de chamar o Itamaraty. O pior de envelhecer, portanto, não é exatamente o acúmulo dos anos e seus efeitos sobre o corpo, o que a gente consegue e não mais consegue fazer. Os piores cerceamentos dizem respeito àquilo que o corpo pode/deve carregar, a simbologia do comportamento apropriado. E eu não estou aqui falando das improbidades óbvias em termos de vestuário e acessórios, do tipo piercing no umbigo e minissaia de couro. Quando nos tornamos pré-idosos um grande limbo se cria entre o vestido largo e floral que a juventude espera de nós uma década à frente e aquilo que é nos é apropriado hoje. O que de pior pode acontecer a um pré-idoso é não ter sido abençoado, desde cedo, com um espírito clássico. Acreditem, sofre menos quem desde pequeno é mais discreto, tipo tailleur. Essa pessoa vai percorrer o trajeto da infância à maturidade praticamente inabalável. Talvez imperceptível, é verdade, mas sem o risco de ser apontado a cada esquina pelos implacáveis herdeiros da juventude. É hora de nos rebelarmos.
SEXO@CIDADE é a coluna de Flávia de Gusmão no Jornal do Commercio do Recife – PE.
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