sábado, 14 de maio de 2011

PORQUE HOJE É SÁBADO...

Caim almadiçoado - 1851
Óleo sobre tela de João Maximiano Mafra
Museu Dom João VI - EBA/UFRJ

A SENTENÇA DE CAIM

Pedro Paulo Paulino

Esperança é uma povoação a umas oito léguas de Canindé, situada nos limites deste município com Quixadá, estando geograficamente mais voltada para a Galinha Choca do que para São Francisco. Boa parte do caminho para chegar até lá é percorrida sobre o asfalto da BR-020 e da CE-040. O mais é feito pela estrada de chão, cortada de grotas e riachos e atropelada por ladeiras.

A velha fazenda, retalhada pelo Incra e entregue aos Sem-terra, foi no passado um chão produtivo e realmente esperançoso, com economia e comércio prósperos. Hoje, com energia elétrica, telefone, internet, água encanada e enfeitada de vistosas antenas parabólicas, mas sem fonte de renda e produção, abriga em torno de mil habitantes que em geral se deslocam diariamente à cidade de Canindé. Para tanto viajam de pau-de-arara, o meio de transporte audacioso para varar aquelas estradas de chão muitas vezes abandonadas.

Logo que fincou sua bandeira nessa povoação, Zé Freire, aborrecido com a lida na roça, mas como incansável batalhador, presumiu que ali podia ganhar a vida mais mansamente tomando partido no ramo empresarial do transporte de passageiros. Tanta gente viajando todos os dias para a cidade, com tão pouco veículo para atender à demanda, deu nele a cafifa de comprar um carro utilitário, equipá-lo e ganhar a estrada – como veterano motorista que é desde a década de 70 quando habilitou-se, por força de vontade e o empurrãozinho de algum político.

E assim o fez. Vendeu parte do seu rebanho, levantou um financiamento no banco, somou tudo e comprou o carro, uma caminhonete Ford modelo F-4000, ano 1994, de cor azul, em cujo pára-choque mandou gravar a seguinte frase: “Casamento é bom; morrer queimado é melhor”. Mandou benzer o carro e equipá-lo com uma pesada carroceria alta, coberta de lona, instalou bancos de aroeira no lastro, colocou um berrante no lugar da buzina, ornamentou o capô com um belo par de chifres que pertenceu ao famigerado boi Vermelhinho, aparelhou a cabine com um toca-fita para ouvir aboio e cantoria no percurso, pendurou a imagem de frei Galvão no pára-brisa e anunciou para a redondeza – Três Irmãos, Serrinha, Olho d´Água etc. – que a partir de então ia fazer a linha de Esperança a Canindé.

Entrou de cara batendo a concorrência, barateando o preço da passagem, indo buscar e entregar o passageiro em domicílio, e ainda patrocinando a rodada de café com bolo na parada de Vila Campos. Além do que, sua conversa – mais comprida que a estrada – ajudava a encurtar a viagem, principalmente para os que iam na boleia. Foi sucesso total. De modo que todo santo dia, antes do sol nascer, o 'Trovão Azul da Esperança' (foi como batizou o seu carro) partia lotado, cumprindo britanicamente o horário.

Mas lidar com gente não é empresa para qualquer um, principalmente se o trabalho é repetitivo. O condutor de transporte coletivo, quando não é vacinado contra zanga, é geralmente um sujeito aporrinhado com tudo. Zé Freire, acostumado a domar touro brabo, botar no barro e arrancar-lhe os chifres, teve séria dificuldade em agüentar a maçada e a exigência dos seus passageiros, principalmente na hora de reunir todo aquele povo para viagem de volta. Dessa forma se lastimava:

– Já tangi 600 bois dos Inhamuns pra Fortaleza, sem ter dor de cabeça. E agora, com 20 ou 30 cristãos daqui pra Esperança, já ‘tou pra jogar pedra na lua!

De saco cheio com a rotineira de carregar pessoas de variada índole, feirante, aposentado, velha enfezada, bebum chorão, chifrudo, eleitor bazofeiro, menino danisco, porco, bode, o diabo a quatro, sujeito a prego de pneu e atoleiro, em pouco tempo largou o volante, fez uma jura a frei Galvão, jogou fora a chave do carro e entregou ao capeta o ofício de dono de horário. Escaldado com a experiência, quando lhe perguntam por que abandonou a linha, ele se sai com esta explicação absurda, que garante constar nas Antigas Escrituras.

De acordo com o relato de Zé Freire, depois que matou Abel, Caim, tomado pelo remorso, prostrou-se de joelhos com as mãos postas perante Deus, e clamou:

– Senhor, matei o meu irmão, qual será a minha pena?

Deus então reuniu um conselho formado por querubins para julgar criteriosamente o primeiro fratricídio. Depois de demorada sessão no Tribunal do Paraíso, o Criador convocou o réu e, de modo irrevogável, proferiu esta sentença:

– Caim, como castigo pelo teu grave delito, o júri, por uma boca só, foi de acordo que eu te entregasse a chave de uma F-4000, te tornes motorista e vás fazer horário da Esperança pro Canindé... Por séculos, sem fim, amém!


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