CARTA DE NAVEGAÇÃO DE UM CASO QUE ACABA
Carlos Heitor
Cony
É
preciso fazer um histórico, porque você sempre esquece a cronologia dos fatos,
talvez por dar pouca importância ao que acontece comigo. Sejam quais tenham
sido meus erros, já sofri tanto e é claro que sofri por opção. Por isso passei
do estado de graça para o choque da revelação brutal: você estava casado outra
vez.
Tentei
me adaptar à nova situação e o consegui, sangrando. Depois você viajou, me
escreveu uma carta quando fazia o percurso Havana-Praga, descreveu o avião, a
noite sobre o oceano e falou que me amava -acho que foi a única vez que você
teve a coragem de admitir que também me amava. No seu regresso, nos trancamos
em Teresópolis, quatro dias e quatro noites de chuva, nunca ninguém foi de
ninguém como você foi meu. Eu estava salva.
Aí
soube que você já se casara com outra. Pensava mais nela do que em você. Vi-a
na rua, dentro do seu carro. Eu vivia apavorada de que alguém viesse a saber,
porque lutei para impô-lo, você foi a causa do rompimento com meu pai. Tinha um
álibi e o perdi: você era apenas um homem desquitado. Sustentei a mentira para
evitar uma situação que era insustentável.
Um
dia, encontrei-o com sua mulher na rua. Uma mulher enganada, mas segura. Nosso
amor transformou-se no apartamento na Barra da Tijuca que você alugava por mês.
Até aquele chalé de Friburgo, onde eu era a sua mulher dois dias por semana,
tudo diluiu-se, comecei a jogar errado, como se não tivesse mais nada a perder.
Comecei a perturbar a sua tranqüilidade, a paz do seu charuto fumado todas as
noites. Tentei viver a minha vida antiga, procurar amigos, sair.
Uma
noite, desesperada para ficar alguns minutos com você, fiz aquela besteira e
fui ao Leme. Na minha alucinação, nem reparei que você estava com outra moça.
Foi o choque maior de todos. Era mais uma estranha em sua vida. O investimento
novo que você havia escolhido e que eu não percebera. Nem mil anos de análise
poderão me curar daquele impacto. Mas no dia seguinte você abriu o jogo.
Confessando que se apaixonara por outra, estava agindo decentemente.
E
agora não vejo mais sua mulher nas ruas, mas essa moça que é tão mais jovem que
você, tão da minha idade. Vejo-a em todas as esquinas. Via-a dentro do seu
carro, em frente ao mar. Nos sábados, a humilhação de saber que você está no
mesmo apartamento, mas com outra. Talvez a mesma rotina, o café da manhã, o seu
suco de laranja bem gelado, o charuto cubano depois do jantar.
Sozinha,
às 8 horas me tranco no quarto para chorar em paz a minha noite vazia. Tentei
reagir, sair com amigos, mas não era boa companhia para eles, carregava comigo
meu pavor de ver o seu carro à minha frente, na porta de um restaurante, com
gente estranha sentada no meu lugar.
Tentei
me desligar de você. Aceitaria os fatos: seria sua amante e pronto. De repente,
a situação em minha casa estourou pra valer. Minhas noites passadas fora, seu
nome dito abertamente na hora das refeições. Mandaram que eu vivesse a minha
vida -mas longe deles. Aluguei um quarto e procurei uma oportunidade para lhe
comunicar. Queria apenas o seu apoio para sustentar a barra de morar sozinha,
em casa de estranhos.
Numa
sexta-feira, consegui pegá-lo na saída do escritório. Falei o que devia, sem
emoção. Depois fomos jantar, você fumou o seu precioso charuto, andando de um
lado para o outro, pensando em voz alta. Abracei muito você, mas não era
gratidão. A idéia de um apartamento era demais. Eu passava a ser a amante
oficializada, a terceira em importância e necessidade. Aquela que não tem o
encanto da namorada com que se janta, que não ganha os presentes de ocasião
porque apresenta todos os meses a conta da luz e do condomínio. Pensei nisso
tudo, mas assim mesmo não pude dormir aquela noite. Era alegria, alegria bruta,
selvagem.
Seguiu-se
o sábado mais importante da minha vida. Saímos para procurar apartamento. Falei
de igual para igual com todos. Tinha de conseguir o que os outros conseguem,
embora o meu passo fosse, em termos de vida, um passo para baixo. Na verdade,
eu seria apenas a amante-quarto-e-sala-conjugado.
Depois
falei com minha mãe. Fizemos um levantamento do que restava do meu antigo
enxoval de noiva. As roupas de dormir estavam reduzidas. Usei-as com você, em
quartos de hotéis. Mas sempre restavam algumas peças que eu poderia usar nas
noites em que você aparecesse.
Quando
você me mostrou a posição da cama no quarto, tive vontade de lhe abraçar, mas
você estava muito sério. Jurei que, com a tranqüilidade que ia adquirir, você
se surpreenderia com uma maturidade que não conhece -nem pode conhecer porque
nunca tive oportunidade de mostrá-la.
Mas
houve novamente um sábado em que quis você. Joguei errado outra vez e
atrapalhei o seu programa. Finquei o pé, fiz malcriação, chorei. Ela chegou.
Perguntou o que estava havendo. Você disse tudo quando respondeu:
"Nada".
Nada.
Deste meu nada, receba este amontoado de pranto que foi o meu amor. E por toda
a vida, toma a minha vida.
Texto
extraído do jornal "Folha de São Paulo", edição de 11/10/2002.
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