A GARGALHADA
Adalgisa
Nery
— Não grita, por favor.
— Não estou gritando. Estou rindo.
— Falar alto ou gargalhar é a mesma coisa. É
manifestação de animalidade que a minha natureza não suporta. Vocês conhecem a
minha fascinação pelas mulheres. Nada para mim tem um poder de atração maior do
que uma mulher. Porém a mulher mais linda, a mais perfeita, a mais fascinante,
falando alto ou gargalhando, faz crescer em mim um ímpeto monstruoso e sinto
que sou capaz de abrir com as mãos o seu pescoço. Fico desvairado; é uma
repulsa incontida. Só os animais se expressam com alarido, só as criaturas
desclassificadas, moral e espiritualmente, falam aos gritos e riem com a
garganta. Já sabem, não gritem nem dêem gargalhadas perto de mim se não
quiserem transformar-me num criminoso. Fico descontrolado com o barulho, seja
ele qual for.
Gaspar e dois amigos conversavam num bar, de
madrugada, onde a fumaça dos cigarros e o cheiro de álcool misturavam-se ao som
de um piano tocado por dedos já cansados e indiferentes ao ambiente.
André, de temperamento alegre, depois de tomar
duas ou três doses de álcool, expandia-se em piadas de mau gosto, acompanhadas
de estridentes gargalhadas.
O outro, Maurício, quase silencioso, observava
demoradamente os freqüentadores do bar, Possuía um interesse especial por dois
detalhes do corpo humano: mãos e nucas.
— Gaspar, você define e classifica as criaturas
pelo falar alto e o gargalhar. Tem razão. Não pode haver inteligência nem
condições espirituais numa pessoa que expressa suas alegrias e suas opiniões
aos berros. Vocês dois criticam sempre a minha atitude quando em silêncio fico
a maior parte do tempo com os olhos pregados nas mãos e na nuca das pessoas à
minha frente. Eu explico. Gosto de definir, através das mãos e da nuca, a essência
do indivíduo. Reparem, por exemplo, aquele sujeito sentado na mesa à nossa
esquerda. Forçosamente tem de ser uma pessoa mesquinha, de fundo avarento,
capaz de sujeiras freqüentes nas vinte e quatro horas do dia. Está acompanhado
de uma mulher que chama a atenção unicamente pela tristeza do olhar. O resto é
comum e insignificante. O seu modo de trajar é suburbano. O seu olhar,
entretanto, carrega pesadas humilhações e penas. O homem que a acompanha não vê
nada disso que esmaga a pobre mulher.
— E você, Maurício, verificou a tristeza da mulher
e a mesquinhez do caráter do homem pelas mãos dele, só pelas mãos? — perguntou
André.
— Sim, pelas mãos. Observem seus gestos e a forma
das suas mãos curtas e gordas, achatadas, de unhas minúsculas enterradas na carne,
dedos cabeludos, pulsos cabeludos. Suas mãos, quando paradas, assemelham-se a
aranhas adormecidas. São mãos asquerosas, devem ter uma transpiração abundante.
Sempre molhadas de suor. Reparem nos seus gestos em curvas pequenas em direção
à sua barriga, Parecem trazer as migalhas da mesa para o seu estômago. Nada em
seu físico define com mais segurança a sua mesquinha personalidade do que as
suas mãos.
— Você o conhece, para marcá-lo assim de maneira
tão positiva?
— Não, nunca o vi. Mas desde que cheguei notei a
sua repelente personalidade pelas suas mãos cabeludas, curtas e de movimentos
repulsivos.
Enquanto Maurício falava sobre as suas
observações, o homem reclamava aos brados, do garçom, uma insignificante
quantia adicionada à nota das despesas. Dava a entender que o pagamento daquele
mínimo excedente iria obrigá-lo a voltar a pé para casa.
A mulher que o acompanhava, de olhos baixos,
sentia a humilhação de quem contribuíra para um grave problema financeiro do
companheiro que a trouxera para o bar; como se reclamasse o preço excessivo da
sua presença ao seu lado, A mulher somava tristezas.
Maurício olhou para os amigos com ar vitorioso de
quem acerta no objetivo. 0 homem de mãos curtas e cabeludas exibira a sua
essência.
— Vejam também agora a nuca deste sujeito que está
sentado de costas para nós. Nuca pálida, enxundiosa, com o nascimento do cabelo
muito alto e semelhante a uma franja rala. Nuca de homem tem de ser com o
nascimento do cabelo no meio do pescoço, de fios grossos marcando vitalidade e
decisão de atitudes. Desconfiem de todo homem que possuir uma nuca que sobe até
o meio da cabeça. Não escapará de ser um indivíduo desleal, traiçoeiro, com
tendência à vida sórdida, vivendo da exploração de mulheres.
— Ora, isso é bobagem. E os que não têm pescoço,
os que não têm nuca, os que têm a cabeça. Diretamente pregada nos ombros, como
são? — perguntou André já bastante alcoolizado.
— Bem, esses são os burros teimosos. Teimosos e
vaidosos. Esses são perigosos. Sentem-se um deus de sabedoria e, se têm uma
parcela de poder ou uma fortuna assegurada, entendem que têm o direito de
arrasar com a humanidade, e que as suas opiniões estão na razão direta do seu
dinheiro, Como já disse, esses sem pescoço são perigosos para a coletividade.
Nesse instante, Maurício chamou a atenção dos
companheiros para o homem da nuca flácida.
— Reparem o que ele está fazendo e vejam como os
meus estudos são infalíveis!
O homem recebia, sob a toalha da mesa, das mãos da
mulher que o acompanhava, o dinheiro com que iria pagar as despesas feitas.
— Qual é a sua finalidade, Maurício, ao estudar e
observar a personalidade das criaturas através dos detalhes das mãos e da nuca?
— A de definir para conhecer a essência das
coisas. É um estudo como outro qualquer. É um divertimento. Meus estudos e
observações não impedirão o nascimento de homens mesquinhos, sórdidos e de
vidas repugnantes, eu sei. Mas cada vez que acerto nas minhas observações, mais
vontade tenho de observar para acertar. É uma espécie de jogo comigo mesmo. O princípio
da ignorância humana é o definir aquilo que se fala ou o que se prefere falar,
sobre o que ainda não se sabe e nem se pode definir. Eu falo do que ainda não
se pode definir. Tento chegar à ignorância humana.
— Por exemplo, o descontrole de Gaspar ao ouvir
alguém gritar ou dar gargalhadas, parece-me uma reação intimamente ligada à sua
sensibilidade. As suas impressões, as suas visões ou os seus ímpetos
inesperados devem variar dependendo da sua receptividade brutalizada por risos
estridentes e barulhos fortes. A reação da sensibilidade de cada pessoa pode
encaminhar-se para o estoicismo ou para o crime. Conheci um rapaz que desde
menino perdia a fala quando cercado de conversas tumultuosas ou de ruídos
agudos. Permanecia completamente mudo por várias horas. Mas mudo mesmo.
Trancava-se no quarto e entregava-se à leitura. A família desorientava-se com a
sua mudez prolongada e repentina. A medicina não oferecia maiores explicações.
A sua mudez era total e a sua audição também seguia o mesmo processo. No dia
seguinte aparecia com a fala e a audição perfeitamente normais. Assustava-se,
terrivelmente, quando ao longe percebia o ronco dos motores de um avião no céu.
Quando o telefone tocava, se ele estivesse perto, corria para o quarto como um
animal batido. Diziam que era um desequilibrado, mas essa conclusão foi posta
por terra quando a família resolveu enviá-lo para uma fazenda no interior, onde
ele só tinha contato com o silêncio. A solução foi afastá-lo de tudo e de todos
na medida do possível. Durante esse período falava e ouvia normalmente,
Interessante é que cantava canções de acalanto e a sua voz tinha uma sonoridade
maravilhosa, 0 tumulto, os gritos, as conversas misturadas, as risadas,
extinguiam instantaneamente a sua voz e a sua audição, mas voltavam perfeitas
na substância do silêncio. Era por isso considerado um tipo estranho e
enigmático. Ora, Gaspar deve estar incluído, sem saber, entre os raros que
sofrem desse mesmo fenômeno. Daí o seu descontrole, a sua angústia, quando
alguém a ao seu lado fala aos gritos ou dá estrondosas gargalhadas. Nota-se em
Gaspar uma imediata transformação fisionômica, um ar desvairado, e não deve ser
sem fundamentos que ele afirma a possibilidade de tornar-se um criminoso ao
ouvir uma gargalhada.
Gaspar ouvia sem interromper Maurício, parecendo
concordar com o diagnóstico do amigo.
Um grande silêncio envolveu a mesa dos três. Ao
longe, rompendo a densidade da fumaça e o enjoativo cheiro de álcool que
dominava o bar, o piano continuava tateado por mãos cansadas e indiferentes
àquelas vidas gastando-se na madrugada. Vinda de um canto do bar, passou pela
mesa dos três amigos uma mulher jovem. Não era bela nem feia. Era uma mulher de
bar. Gaspar segurou-lhe o braço e indagou se estava sozinha. A mulher respondeu
afirmativamente.
— Para onde vai?
— Para casa.
— Espere, vou com você.
Saíram os dois.
Num hotel barato, os outros hóspedes ouviram a
porta de um quarto fechar-se. Depois o murmúrio de vozes do casal. De repente,
uma gargalhada inundou o corredor do hotel. Outra gargalhada. Depois o silêncio
absoluto.
Pela manhã, quando a arrumadeira iniciou o seu
serviço, ao passar pelo quarto ocupado pelo casal da madrugada, viu pela porta
entreaberta uma mulher nua, deitada na cama, tendo sobre a cabeça um
travesseiro.
O seu corpo morto deixava fora do lençol um seio
alvo e volumoso.
Texto extraído do livro
"Contos de escritoras brasileiras", Martins Fontes - São Paulo, 2003,
pág. 17, organizadoras: Lúcia Helena Vianna e Márcia Lígia Guidin.
Imagem Google
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