A RESPOSTA
Lêdo Ivo
Seu
nome era Serafim Costa. Mas nome de quem, ou de que? Na cidade pequena ,
decerto a sua figura deveria ter se cruzado, muitas vezes, com a do menino
fardado, de camisa branca e curtas calças azuis extraídas das velhas casimiras
paternas. Ele, o comerciante abastado, talvez comendador, não conhecia o
garoto. E este jamais poderia ligar o nome à pessoa. Assim, Serafim Costa era
apenas um nome — a belíssima sonoridade de um estilhaço de mitologia, uma flor
aérea que, em vez de pétalas, possuía sílabas.
Ele
morava no Farol, exatamente onde o bonde fazia a última curva. Os muros brancos,
que cercavam o quarteirão, semi-escondiam a casa, também branca, além do jardim
que aparecia entre as grades, e em cujos canteiros florejavam espessuras e
certas musguentas flores amarelas, e um imenso besouro zoava. A casa era um
palacete de dois andares, crivado de sacadas e cegas janelas, e que parecia
desabitada. Possivelmente essa incorrigível falsária, a Memória, a pintou, sem
tir-te nem guar-te, com a sua branca tinta adúltera, substituindo a verdade
nativa, feita de alvorentes azulejos pintalgados de azul, por alguma caprichosa
arquitetura rococó. De qualquer modo, de outro lado do muro reto, sem dúvida
encimado por afiados cacos de garrafas para impedir o salto dos ladrões, a
gente via as copas das mangueiras, cajueiros, palmeiras e outras árvores sob as
quais alguns cães esperavam, impacientes, que a rotina bocejante do dia se
esfarelasse para que eles pudessem latir, na noite raiada de estrelas, como que
lembrando a Serafim Costa — que interromperia por meio minuto o seu sono
tranqüilo e patriarcal — as suas presenças vigilantes.
—
Aqui mora Serafim Costa devia ter-me dito meu pai, num daqueles crepúsculos em
que, de bonde, voltávamos para casa; ele com a sua velha pasta que
inexplicavelmente não o acompanhou ao túmulo (o que talvez não o fizesse ser de
pronto reconhecido no Paraíso), e nós ainda guardando nos ouvidos o bulício
vesperal do instante em que, aberta a porta do grupo escolar, as crianças
escoavam para a praça e se perdiam nas escurentas ruas tortuosas.
O
palacete branco vulgava riqueza, luxo, secreto esplendor. Além das portas
fechadas, das presumíveis estatuetas de mármore, do aroma das dálias, do fino
palor dos azulejos, das mudas venezianas, havia decerto um universo de
opulência, que a nossa fantasia de meninos pobres mal podia imaginar. A tarde
transcurecia; o portão fechado validava-se como o brasão de uma existência que,
terminados os diálogos inevitáveis de seu ofício de grande comerciante sempre
atarefado e vigilante, suspendia qualquer tráfico com as mesquinharias diurnas,
igual a um navio que, após todo o baixo ritual da estiva, readquire a sua
dignidade perdida sulcando o mar sem amarras.
Era
o palácio de Serafim Costa. E o nome, a magia desse nome que ocupou toda a
minha infância, e era o preâmbulo mágico das encantações, demorava-se em mim,
.solfejando-se no ar eternamente perfumado pelo Oceano. Meu pai, então
guarda-livros de um armazém de tecidos, conhecia Serafim Costa, e nos mostrava
a sua residência. "Aqui mora Serafim Costa." Não nos nomeava uma
forma definida de casa (sobrado, bangalô, palacete); e certo aquela moradia,
uma das mais luxuosas da pequena cidade, refugia às denominações irreversíveis.
Ignoro se Serafim Costa era alagoano ou um dos muitos imigrantes portugueses
que, estabelecidos em Maceió, enriqueceram em tecidos ou em secos e molhados e
terminaram comendadores — mas em seu palacete, na exuberância do jardim
equatorial, no chão assombrado de árvores enlanguescidas pelo mormaço, havia
algo que era a fusão improfundável dos mais faustosos elementos nativos com uma
substância remota e avoengueira, como que a reprodução de antiga planta deixada
do outro lado do mar e tacitamente reconstruída pela poupança e ambição do
imigrante afortunado. Por isso, meu pai dizia aqui, querendo assim
significar tudo o que era o império de Serafim Costa: as grades do jardim, os
sinuosos canteiros colmeados de folhas e flores, os calangros e insetos, a água
espatifada de uma fonte, os familiares que não apareciam às janelas, talvez
para não confundir a visão de todos os que, como eu, o imaginavam reinando
solitário em sua mansão, sem quinhoar ostensivamente com ninguém o resultado,
de sua vida vitoriosa, feita de zelo e siso.
Embora
eu não tivesse conhecido Serafim Costa, tornou-se-me familiar aos olhos um dos
empregados de seu armazém. Era um velho corcunda, de fiapos brancos na cabeça
calva, e devoto. Alguns anos depois, quando já tínhamos deixado de morar no
sítio e passáramos a habitar numa rua do centro da cidade, estávamos todos, no
sótão, assistindo à passagem de uma procissão que enchia a monotonia da tarde
de domingo. Súbito, identifiquei na multidão o corcunda velho e devoto, e
exclamei:
—
Olhe o Serafim Costa!
A
exclamação fez espécie a meu pai, que se virou para mim, surpreendido com a
notícia. Seu ar era mais do que de dúvida — decerto eu dissera uma heresia, que
reclamava pronta corrigenda ou a aura de uma prova irretocável. Com o dedo,
apontei o velho corcunda que, de casimira preta na tarde de sol fugidiço,
vencia, na aglomeração, os. paralelepípedos da rua. Meu pai reconheceu o
empregado de Serafim Costa e exclamou, de bom rosto:
—
Não é o Serafim Costa — e achou engraçado que eu confundisse o empregado
humilde e devoto com o poderoso e mitológico patrão.
E
assim ele ficou sendo, para mim, sempre e eternamente, um nome, inatingível
figura do ar. Muitas vezes, passeando sozinho pelo sítio ou junto ao mar
lampejante, eu repetia esse nome, despetalava-o na brisa como se ele fosse um
malmequer, juntava de novo as pétalas das sílabas que cantavam mesmo momentaneamente
esquartejadas. Serafim Costa! dizia eu bem alto para que os costados dos navios
pudessem devolver-me, em forma de eco, essa primeira lição de poesia, essa
infindável soletração do absoluto.
Muitos
anos depois, desintegrada a infância, e já envolto numa névoa de estrangeiro,
voltei à curva do bonde. Era ali que morava Serafim Costa — o portão fechado
era sinal de que ele estava lá dentro, movendo-se possivelmente entre frutas
maduras, gatos sonolentos e bojudas porcelanas azuis. Trinta anos se tinham passado
desde os dias em que o bonde, na volta da escola, nos fazia ver a misteriosa
morada, o universo branco e verde estriado de agudas grades negras e manchas
róseas. O invisível Serafim Costa já deveria estar morando, e de há muito, em
outra alvacenta morada... Mas parei diante do portão cerrado, espiei o jardim
silencioso, os vasos de azulejos, as escadarias de mármore, as altas janelas
que pareciam sotéias. E chamei: Serafim Costa!
Chamei
a quem, a que? E ocorreu o milagre. O nome ficou suspenso no jardim onde se
ocultava uma cobra papa-ovo, depois voou pelos ares, como um pássaro; chocou-se
contra os costados dos cargueiros que, no destempo hirto, desembarcavam em
Maceió os caixotes das mercadorias encomendadas, do outro lado do Oceano, pelo
valimento comercial de Serafim Costa; e, metamorfoseado em eco, voltou de novo
aos meus ouvidos, já agora na soberba hierarquia de um nome que não precisa
mais de figura ou de anedota; e se tornou para sempre algo sonoro e puro,
deslumbrante e enxuto.
E,
assim, obtive a resposta.
Imagem Google
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