MOTO PRÓPRIO
Carlos Heitor
Cony
Tinha
27 anos e uma motocicleta. Não tinha mais nada nem precisava. Possuía o mundo e
todas as pompas do universo porque sentia a moto entre as pernas. Amava a moto
e, de moto próprio, só amou a própria moto.
Vivia
trepado na moto, correndo pelas estradas, sentindo o trepidar dos 57 cavalos do
motor. Era um deus, dono do mundo, dono do próprio destino. Não saía da moto
nem para comer nem para beber. Tampouco dormia.
A
moto o possuía e ele possuía a moto.
Andava
sem itinerário, nunca ia a parte alguma porque se considerava em todas as
partes. Adquiriu a onipresença - própria dos deuses - de ser e estar em todos
os lugares e modos.
O
rapaz virou Deus.
Não
se preocupava com o Bem e o Mal. O único mal seria a moto enguiçar ou a
gasolina acabar. Mas a moto era eterna, a gasolina jamais acabava. A força das
coxas que espremiam a moto entre as pernas era tanta e tamanha que os 57
cavalos não precisavam de outra energia.
O
rapaz era a moto e a moto era o rapaz.
O
sol ou a chuva em nada afetavam o rapaz ou a moto. De dia ou de noite, a marcha
era a mesma, e mesmo o trepidar. As pessoas que, ao longe, viam passar a moto e
o rapaz pensavam que era um anjo, ou o próprio Deus descido à Terra.
O
rapaz não ligava para a admiração que causava, admiração que se transformou em
adoração. Os camponeses, quando viam ou ouviam a moto, ajoelhavam-se à beira
das estradas e rezavam, pedindo proteção para as colheitas. Uma lenda logo se
formou: por onde o rapaz e a moto passassem, o chão se abriria, fecundo, em
frutos e flores.
À
noite, as jovens sonhavam que o rapaz e a máquina chegavam. Elas acordavam em
orgasmo, o rapaz e a máquina entravam pela carne das virgens.
Foram
criados exorcismos específicos, a fim de impedir que as púberes caíssem em
sonhos tais. Numa certa região dos Lagos Gelados, após um sonho com o rapaz e a
moto, uma virgem pariu uma pequenina motocicleta, de 15 cavalos apenas.
Depois
de algum tempo, o rapaz e a moto começaram a preocupar as autoridades. Também
os deuses se ocuparam do rapaz e da moto, sentiam que alguma coisa de anormal
ocorria no mundo.
Os
deuses se reuniram com as autoridades e deliberaram dar um fim ao rapaz e à
moto. Era impossível acabar com os dois, ao mesmo tempo. A moto era
indestrutível. Nem o fogo nem a água podiam contra ela. E o rapaz, enquanto
estivesse em cima da moto, seria indestrutível. Nem o fogo nem a água podiam
contra ele.
Então,
o mais velho dos deuses sugeriu um acidente que poderia acabar com o rapaz e a
própria moto, mas de moto próprio.
Num
cair de tarde, o rapaz vacilou diante do sol que se punha no horizonte, à sua
frente. Não viu a árvore que tinha galhos para dentro da estrada. A velocidade
era grande e o seu corpo foi projetado para a frente e para o alto. Ficou preso
nos galhos da árvore. Pelo muitos anos em que vivera trepado na moto, o rapaz
continuou de pernas abertas, como se entre elas tivesse, ainda, a sua moto.
Após
ter expelido o dono, a moto prosseguiu a marcha desgovernada, para cima e para
a frente, de tal modo que, de moto próprio, encravou-se entre as pernas do
rapaz. Tamanho o desejo de voltar a ser possuída pelo dono, que penetrou-o sem
dor.
De
longe, os deuses viram que a moto fora tragada pelo rapaz. E muito se
rejubilaram: o rapaz desintegrou-se, desintegrando a moto.
Os deuses providenciaram para que o corpo desaparecesse - única forma de fazer desaparecer, também, a indestrutível moto, que nem o fogo e a água podiam contra ela. Aproveitaram o cair da noite e sepultaram os escombros do rapaz e da moto no túmulo do vento.
Os deuses providenciaram para que o corpo desaparecesse - única forma de fazer desaparecer, também, a indestrutível moto, que nem o fogo e a água podiam contra ela. Aproveitaram o cair da noite e sepultaram os escombros do rapaz e da moto no túmulo do vento.
As
autoridades bateram palmas.
Quando
o dia raiou, nada mais havia do rapaz e da moto. O mundo continuou com suas
estradas assassinas e suas árvores criminosas.
Os
deuses se sentiram recompensados. E as autoridades, depois de muito bater
palmas, foram bater as populações vizinhas, cobrando impostos, taxas e demais
posturas a que tinham direito pela lei.
Texto extraído do suplemento "Primeiras
histórias do ano 2000", publicado pelo jornal Folha de São Paulo em
01/01/2000, pág. 04.
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