O BANHEIRO
Millôr Fernandes
Não é o lar o último recesso do homem civilizado,
sua última fuga, o derradeiro recanto em que pode esconder suas mágoas e dores.
Não é o lar o castelo do homem. O castelo do homem é seu banheiro. Num mundo
atribulado, numa época convulsa, numa sociedade desgovernada, numa família
dissolvida ou dissoluta, só o banheiro é um recanto livre, só essa dependência
da casa e do mundo dá ao homem um hausto de tranquilidade.
É ali que ele sonha suas derradeiras filosofias e
seus moribundos cálculos de paz e sossego.
Outrora, em outras eras do mundo, havia jardins
livres, particulares e públicos, onde o homem podia se entregar a sua meditação
e a sua prece. Desapareceram os jardins particulares, pois o homem passou a
viver montado em lajes, tendo como ilusão de floresta duas ou três plantas
enlatadas que não são bastante grandes para ocultar seu corpo da fúria
destrutiva da proximidade forçada de outros homens. Não encontrando mais as
imensidões das praças romanas que lhe davam um sentido de solidão, não tendo
mais os desertos, hoje saneados, irrigados e povoados, faltando-lhe as grutas
dos
companheiros de Chico de Assis, onde era possível refletir e ponderar, concluir e amadurecer, o homem foi recuando, desesperou e só obteve um instante de calma no dia em que de novo descobriu seu santuário dentro de sua própria casa: o banheiro.
companheiros de Chico de Assis, onde era possível refletir e ponderar, concluir e amadurecer, o homem foi recuando, desesperou e só obteve um instante de calma no dia em que de novo descobriu seu santuário dentro de sua própria casa: o banheiro.
Se não lhe batem à porta outros homens (pois um
lar, por definição, é composto de mulher, marido, filho, filha e um ou outro
parente, próximo ou remoto, todos com suas necessidades físicas e morais, ele,
ali, e só ali, por alguns instantes, se oculta, se introspecciona, se reflete,
se calcula e julga. Está só consigo mesmo, tudo é segredo, ninguém o interroga,
pressiona, compele, tenta, sugere, assalta.
Aqui é que o chefe da casa, já passando dos
quarenta anos, olha os cabelos já grisalhos, os claros da fronte, e reflete,
sem testemunhas nem cúmplices, sobre os objetivos negativos da existência que o
estão conduzindo, embora bem sucedido na vida prática, a essa lenta degradação
física. Examina com calma sua fisionomia, põe-se de perfil, verifica o grau de
sua obesidade, reflete sobre vãs glórias passadas e decide encerrar
definitivamente suas pretensões sentimentais, ânsia cada vez maior e mais
constante num mundo encharcado de instabilidades.
É nesse mesmo banheiro que o filho de vinte anos
examina a vaidade de seus músculos, vê que deve trabalhar um pouco mais seus
peitorais, ensaia seu sorriso de canto de boca, fica com um olhar sério e
profundo que pretende usar mais tarde naquela senhora bem mais velha do que
ele, mas ainda cheia de encantos e promessas. É aqui que a filha de 17 anos vem
ler o bilhete secreto que recebeu do primo, cujos sentimentos são insuspeitados
pelo resto da família. Já leu a carta antes, em vários lugares, mas aqui tem o
tempo e a solidão necessários para degustá-la e suspirá-Ia. É aqui também que
ela vem
verificar certo detalhe físico que foi comentado na rua, quando passava por um grupo de operários de obras, comentário que na hora ela ouviu com um misto de medo e desprezo.
verificar certo detalhe físico que foi comentado na rua, quando passava por um grupo de operários de obras, comentário que na hora ela ouviu com um misto de medo e desprezo.
É aqui que a dona de casa, a mãe de família, um
tanto consumida pelos anos, vem chorar silenciosamente no dia em que descobre
ou suspeita de uma infidelidade, erro ou intenção insensata por parte do marido,
filho, filha, irmãos. Aqui ninguém saberá, ninguém a surpreenderá, pode
amargurar-se até os soluços e sair, depois de alguns momentos, pronta e
tranqüila, com a alma lavada e o rosto idem, para enfrentar sorridente os
outros misteriosos e distantes seres que vivem no mesmo lar.
Não há, em suma, quem não tenha jamais feito uma
careta equívoca no espelho do banheiro, nem existe ninguém que nunca tenha tido
um pensamento genial ao sentir sobre seu corpo o primeiro jato de água fria.
Aqui temos a paz para a autocrítica, a nudez necessária para o frustrado
sentimento de que nossos corpos não foram feitos para a ambição de nossas
almas, aqui entramos sujos e saímos limpos, aqui nos melhoramos o pouco que nos
é dado melhorar, saímos mais frescos, mais puros, mais bem dispostos.
O banheiro é o que resta de indevassável para a
alma e o corpo do homem moderno, e queira Deus que Le Corbusier ou Niemeyer não
pensem em fazê-lo também de vidro, numa adaptação total ao espírito de uma
humanidade cada vez mais gregária, sem o necessário e apaixonante sentimento da
solidão ocasional.
Aqui, neste palco em que somos os únicos atores e
espectadores, neste templo que serve ao mesmo tempo ao deus do narcisismo e ao
da humildade, é que a civilização hodierna encontrará sua máxima expressão, seu
ultimo espelho que é o propriamente dito.
Xantipa, que diabo, me joga essa toalha!
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