HOJE NÃO ESCREVO
Carlos Drummond
de Andrade
Chega um dia de falta de assunto. Ou, mais propriamente, de falta
de apetite para os milhares de assuntos.
Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os
dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas
com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não
só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples
claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa
de ser realidade quente para se reduzir a marginália, purê de palavras,
reflexos no espelho (infiel) do dicionário.
O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas
o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não
é possível contar. Você esperando que os outros vivam para depois comentá-los
com a maior cara-de-pau (“com isenção de largo espectro”, como diria a bula, se
seus escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos
outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior.
Divino. Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para
o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução, um adultério grego - às
vezes nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha
para verrumar a madeira. Sim, senhor, que importância a sua: sentado aí, camisa
aberta, sandálias, ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a
angústia, a revolta, o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um
deles.
Ah, você participa com palavras? Sua escrita - por hipótese -
transforma a cara das coisas, há capítulos da História devidos à sua maneira de
ajuntar substantivos, adjetivos, verbos? Mas foram os outros, crédulos,
sugestionáveis, que fizeram o acontecimento. Isso de escrever O Capital é uma coisa, derrubar as estruturas,
na raça, é outra. E nem sequer você escreveu O
Capital. Não é todos os dias que se mete uma idéia na cabeça do próximo,
por via gramatical. E a regra situa no mesmo saco escrever e abster-se. Vazio,
antes e depois da operação.
Claro, você aprovou as valentes ações dos outros, sem se dar ao
incômodo de praticá-las. Desaprovou as ações nefandas, e dispensou-se de
corrigir-lhe os efeitos. Assim é fácil manter a consciência limpa. Eu queria
ver sua consciência faiscando de limpeza é na ação, que costuma sujar os dedos
e mais alguma coisa. Ao passo que, em sua protegida pessoa, eles apenas se
tisnam quando é hora de mudar a fita no carretel.
E então vem o tédio. De Senhor dos Assuntos, passar a espectador
enfastiado de espetáculo. Tantos fatos simultâneos e entrechocantes, o absurdo
promovido a regra de jogo, excesso de vibração, dificuldade em abranger a cena
com o simples par de olhos e uma fatigada atenção. Tudo se repete na linha do
imprevisto, pois ao imprevisto sucede outro, num mecanismo de monotonia...
explosiva. Na hora ingrata de escrever, como optar entre as variedades de
insólito? E que dizer, que não seja invalidado pelo acontecimento de logo
mais, ou de agora mesmo? Que sentir ou ruminar, se não nos concedem tempo para
isso entre dois acontecimentos que desabam como meteoritos sobre a mesa? Nem
sequer você pode lamentar-se pela incomodidade profissional. Não é redator de
boletim político, não é comentarista internacional, colunista especializado,
não precisa esgotar os temas, ver mais longe do que o comum, manter-se afiado
como a boa peixeira pernambucana. Você é o marginal ameno, sem responsabilidade
na instrução ou orientação do público, não há razão para aborrecer-se com os
fatos e a leve obrigação de confeitá-los ou temperá-los à sua maneira. Que é
isso, rapaz. Entretanto, aí está você, casmurro e indisposto para a tarefa de
encher o papel de sinaizinhos pretos. Concluiu que não há assunto, quer dizer:
que não há para você, porque ao assunto deve corresponder certo número de
sinaizinhos, e você não sabe ir além disso, não corta de verdade a barriga da
vida, não revolve os intestinos da vida, fica em sua cadeira, assuntando,
assuntando...
Então hoje não tem crônica.
2 comentários:
Fatita, obrigada por nos presentear com esta crônica maravilhosa de Carlos Drummond. Bj Suely Sousa
Suely,
Drummond é sempre Drummond! Sempre uma maravilha a nos deliciar com seus textos e poesias incríveis!
Obrigada pela visita e pelo comentário.
Abraços!
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