SOBRE ROSAS, FORMIGAS, TAMANDUÁS...
Rubem
Alves
O seu nome era Brasilino Jardim. Brasilino Jardim
tinha jardim no nome e jardim no coração. Ele amava todas as coisas vivas, de
plantas a urubus. A vida, para ele, era sagrada.
Brasilino Jardim não ia à igreja. As pessoas
religiosas temiam por sua alma e se perguntavam: "Ele não sabe que é
preciso ir à igreja para estar bem com Deus? Quem não está bem com Deus corre
perigo! Deus castiga!"
Brasilino sorria um sorriso manso e perguntava:
"Onde está dito, nas Sagradas Escrituras, que Deus fez uma igreja? Todo
Poderoso, se quisesse igrejas teria feito igrejas. Todo Poderoso, ele fez o que
queria. E o que é que ele fez? Plantou um jardim. E está dito que ele 'andava
pelo jardim ao vento fresco da tarde!' Quando estou no jardim sei que estou
andando no lugar que Deus ama. Deus ama a vida, o vento, o sol, a terra, a água
— coisas que estão no jardim. Mas as igrejas são lugares fechados, abafados.
Bichos e plantas não se sentem felizes lá dentro..."
Não freqüentava igrejas mas amava um santo: São
Francisco. Porque São Francisco foi o homem que via Deus nas coisas da
natureza. São Francisco amava tudo o que vivia e, segundo a lenda, as coisas
que viviam o entendiam, tanto que ele pregava sermões aos peixes e aos
pássaros. Freqüentemente os animais ouvem melhor que os seres humanos...
Foi então que o Brasilino Jardim resolveu plantar
um jardim em homenagem a São Francisco. Teria de ser um lindo jardim, com um
canteiro de rosas no meio. E assim foi. Vendo as folhas viçosas das roseiras, a
primeira rosa que se abrira e os botões que se abririam no dia seguinte,
Brasilino foi dormir contente.
Ao acordar pensou logo no jardim. Queria ver se os
botões já estavam abertos. Mas, decepção! O que ele encontrou foi devastação.
Durante a noite as formigas saúvas haviam cortado todas as folhas e todas as
flores das roseiras. Brasilino ficou muito triste. Resolveu aconselhar-se com
um vizinho que tinha um lindo canteiro de rosas floridas.
"O jeito é matar as formigas", disse o
vizinho. "Formigas e jardins não combinam. Para as formigas jardins são
hortas, coisas para serem comidas."
"Matar as formigas? De jeito nenhum. São
criaturas de Deus, como todos nós. Se foi Deus quem as fez, elas têm o direito
de viver. Formigas têm direitos..." E com essas palavras deixou o vizinho
falando sozinho. "Onde já se viu matar as formigas? São criaturas de Deus.
Tem de haver outro jeito..."
Pensou: "Se as formigas comeram as roseiras,
comeram porque estavam com fome. Não foi por maldade. Se eu der comida às
formigas elas deixarão de ter fome e não comerão as rosas".
Dito isso plantou, à volta do jardim de rosas, um
anel de cenouras tenras e doces que seriam o deleite alimentar das formigas.
Mas as formigas ignoraram as cenouras. Continuaram a comer as roseiras.
"Talvez elas não tenham entendido", ele
pensou. "Não perceberam nem que as cenouras são deliciosas e nem que são
para elas. Ainda não foram educadas. Se forem educadas para gostos mais
refinados não comerão as rosas. Serei um educador de formigas."
E como sabia que a noite é o tempo preferido pelas
formigas para cortar roseiras, Brasilino passou a dar aulas às formigas durante
a noite, peripatéticamente, no seu jardim. Queria que as formigas aprendessem a
gostar gastronomicamente de cenouras e plasticamente de rosas.
O vizinho ficou incomodado com aquele falatório
noturno. Foi ver do que se tratava. E se espantou. "Brasilino, você
endoidou? Pregando às formigas?" Brasilino respondeu: "São Francisco
pregou aos pássaros e aos peixes. E eles entenderam. Pois eu vou pregar às
formigas e elas haverão de entender." Mas as formigas não ligavam para a
aula do Brasilino. Não aprenderam a lição nova. Formiga continua a ser formiga.
Continuaram a cortar as roseiras.
Diante do fracasso da pedagogia, Brasilino se
lembrou de um recurso inventado pelos humanos chamado "condomínio". O
que é um condomínio? São casas cercadas de muros de todos os lados, com o
objetivo de impedir a entrada dos criminosos, que ficam do lado de fora.
"Farei o mesmo com as minhas roseiras", ele disse triunfante. Ato
contínuo tomou garrafas de coca litro, cortou bicos e fundos, fez um corte
vertical ao lado e usou esses cilindros ocos como cintas protetoras para os
caules das roseiras. "Agora minhas roseiras estão protegidas! As formigas
não entrarão!" Pobre Brasilino! Ele não conhecia a esperteza das formigas.
Elas sabem fazer túneis, escalar muralhas, passar por frestas, fazer pontes. E
quando ele foi ao jardim, pela manhã, viu que as formigas haviam devorado de
novo suas roseiras.
Lembrou-se então Brasilino de uma velha estória
que relata o feito de um flautista que livrou uma cidade de uma praga de ratos
que a infestava. O que foi que o flautista fez? Simplesmente tocou sua flauta!
"Ah! A música tem poderes mágicos! Claro, as formigas não entendem a
linguagem pedagógica dos argumentos. Haverão de ser sensíveis à magia da
música." Comprou uma flauta e pôs-se a tocar o Bolero de Ravel. As
formigas reagiram imediatamente. Sentiram o poder da música. Até os bichos têm
música na alma. Começaram a mastigar folhas e rosas ao ritmo da música
encantadora.
Com o fracasso da música, veio-lhe, então, uma
nova idéia: "Se as formigas não podem ser nem conscientizadas pela palavra
e nem sensibilizadas pela música, as rosas podem ser. Assim, vou despertar nas
minhas rosas o sentimento da não-violência, da beleza da paz. O pensamento tem
poder. Se todas as rosas fizerem juntas uma corrente de pensamentos de paz a
energia positiva no ar será tão forte que as formigas se converterão..."
Espalhou, pelo jardim, imagens coloridas de paz.
Flores sorridentes. Pôs CDs com música sobre rosas, Strauss, Vandré e Caymmi.
Tudo, no espaço do jardim, sugeria paz e não violência. Quem visitasse o seu
jardim sentia a energia positiva no ar. Mas parece que as formigas não eram
sensíveis à energia positiva de paz. Continuaram a cortar as rosas.
Aí ele começou a ter raiva das rosas. "Não
compreendo a passividade das rosas! Elas não se defendem! Tinham de se
defender! Pois Deus não dotou as criaturas com o direito de defender a sua
vida?"
Cobriu então os galhos das roseiras com espinhos
pontudos e afiados, facas e espadas que as rosas deveriam usar para se defender
das formigas. Mas as rosas não sabiam se defender. Não sabiam usar armas. Eram
mansas e desajeitadas por natureza. As formigas continuaram a subir pelos seus
galhos sem ligar para os espinhos.
No desespero, Brasilino resolveu tomar uma atitude
mais radical, que mesmo contrariava seu sentimento de reverência pela vida: foi
para o jardim munido de um martelo e pôs-se a martelar as formigas que se
aproximavam das suas roseiras. Mas o número das formigas era imenso. Não
paravam de chegar. Matou muitas formigas a marteladas, o que não as perturbou.
E havia também o fato de que Brasilino não podia ficar martelando formigas o
tempo todo. Precisava dormir. Dormindo, o martelo descansava. E as formigas
trabalhavam.
"Já sei!", ele disse. "Apelarei
para o Papa. O Papa tem reza forte. Pedirei que ele ore para que as formigas
parem de comer minhas rosas" . Escreveu então uma carta para o Papa,
expondo o seu sofrimento, e pedindo que ele intercedesse junto aos santos,
junto à virgem, junto a Deus... Afinal de contas, as hostes celestiais deviam
ter um interesse especial na preservação do jardim, aperitivo do Paraíso.
As autoridades eclesiásticas, de posse da carta de
Brasilino, deram a ela a maior consideração, e a colocaram na lista da orações
pela paz que o Papa rezava diariamente: paz entre judeus e palestinos, paz
entre russos e chechênios, paz entre protestantes e católicos, paz na Espanha,
paz na Colômbia, paz no Peru, paz na África... Era uma lista enorme. O Papa
orou mas nada mudou. Os homens continuaram a se matar e as formigas continuaram
a cortar suas roseiras.
De repente ele ouviu uma voz que o chamava. Era a
voz do seu vizinho, que contemplava tudo em silêncio. "Eu tenho uma
solução para o seu problema com as formigas, sem que você tenha de matar as
formigas."
Brasilino se espantou: "Como?"
O vizinho explicou: "Você acha que as
formigas são criaturas de Deus. Sendo criaturas de Deus têm direito a viver.
Você está em boa companhia espiritual. Homens como São Francisco, Gandhi e
Schweitzer também sentiam reverência pela vida." Brasilino ficou feliz ao
se ver colocado ao lado desses santos.
Seu vizinho continuou: "Mas isso que você diz
para as formigas deve valer para todas as criaturas. Certo?"
"Certo", concordou Brasilino.
"Então, por que você não traz um tamanduá
para morar no seu jardim? Tamanduás também são criaturas de Deus. E adoram comer
formigas! Para isso têm uma língua fina e comprida, que entra até o fundo dos
formigueiros! Para o tamanduá, comer formiga não é pecado; é virtude!"
E foi assim que o Brasilino, sem desrespeitar suas
convicções espirituais, trouxe um tamanduá para viver no seu jardim.
E o tamanduá engordou, as formigas sumiram, o
jardim floresceu e o Brasilino sorriu...
Moral da estória: Quem quiser se livrar das
formigas e manter uma consciência tranqüila, que compre um tamanduá...
O texto acima foi
extraído do jornal "Correio Popular — Revista Metrópolis", de
Campinas (SP), onde o escritor mantém coluna bissemanal.
Imagem Google
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