O CHOFER SIMEÃO E SUA FUBICA* - Parte II
Paulo Lisker,
de Israel
Era nos anos trinta, talvez no
principio dos anos quarenta. Naquele tempo tudo durava uma eternidade. Ninguém
se apressava em comprar nada novo, tudo se arrumava, meia sola nos sapatos,
soldar as panelas furadas, afrouxar as calças, os sapatos, remendar as meias,
tingir roupa desbotada, nada se perdia tudo tinha como recuperar e colocar de
volta ao uso normal. Eram outros tempos.
A fubica do chofer Simeão, Ford
Bigode do ano 1929, parecia que tinha saído agorinha mesmo da fabrica de
carros, nem um arranhãozinho, nada machucado a tinta brilhava que doía até na
vista quem olhasse para ela nas horas de muito sol e isto é coisa que não falta
no Recife.
Eita "bichinha" bonita
danada e a buzina dela era algo que nos dias de hoje, nem pensar. Toda gente se
admirava, ao ouvir:
AUHA-AHUA-HAHUAAA. Que beleza de buzina era de dar gosto. AUHA-AHUA-HAHUAAA. Era como se a
fubica quisesse falar com os transeuntes e dizer: "olha aí, estou passando, como vai gente boa, tudo bem, AUHA-AHUA-HAHUAAA".
Tudo que eram postigos e janelas se
abria e as domesticas só voltavam aos seus afazeres depois de ver aquela beleza
de fubica deslizar defronte da casa.
Nas ruas não tinha quem não torcesse
o pescoço ou parasse pra ver.
Fubica conservada desse jeito só o
senhor Simeão sabia como, todo minutinho vago ele tirava a caixa que continha o
seu segredo, um trapo de pano macio e uma lata de cera "Dupont" (Me
lembro do cheiro desta cera) e se dedicava a fazer a sua fubica brilhar mais
que o "rei sol".
Era assim que naquele tempo as coisas
duravam por mais de uma geração.
Diziam os brincalhões da época, que
se os choferes cuidassem desse jeito da sua família, não haveria divórcios.
Simeão era assim, celibatário.
Cuidava de si e da sua fubica.
Na realidade o proprietário da fubica
era o Comendador de Arruda, que comprara naquele ano três carros dessa marca e
os colocou nas diversas praças para servir de carros de aluguel (Táxi), à
aristocracia da cidade do Recife.
Uma delas o Comendador confiou ao
chofer Simeão que era um homem serio, crente, honesto e tinha diploma de
mecânico de automotores, fornecido pela Opel do Recife.
Não gosto de contar, mas vou dizer
para vocês aqui em segredo que a inveja dos outros choferes da praça era enorme
e ficavam mais que arretados da vida quando um pirralho que vinha com a
família, agarrava a mãe pelo braço e dizia:
- Mãe ta
ali o senhor Simeão com sua fubica, que sorte né mãe, alugue ele pra nos levar
para visitar tia Mali na Madalena.Vamos com ele mãe, vê que carro bonito danado.
Os outros choferes, não sabiam onde
meter a cara e se escondiam atrás de um jornal (o suplemento dos esportes, em
geral), tirando baforadas dos charutos nacionais que sempre estavam num canto
da boca.
Agora voltemos a "vaca fria"
em continuação à viagem que se iniciou no Cais de Santa Rita em direção a Praça
Maciel Pinheiro com um passageiro que momentos antes tinha chegado do interior
de Pernambuco em busca de parentes no Recife.
A fubica de seu Simeão seguia rodando
devagar pelas ruas apinhadas de transeuntes levando as compras efetuadas
momentos antes, carregadores com moveis na cabeça (sempre cantando), carroças
puxadas a cavalo (animais de uma raça "diminuta" que a genética
negativa formou no nordeste do Brasil) e até cachorros vadios ("Vira
Latas", na língua do povo), atrapalhando o transito.
De tudo isso dizia senhor Simeão:
- O que
mais me incomoda é a grande quantidade de bosta dos cavalos no meio das ruas e
que ninguém se preocupa de limpar. Ai dos meus pneus Firestone de banda
branca, toda viagem por aqui, eles ficam todo melados desta merda, Nossa
senhora! Trabalho danado para limpar no fim do dia.
Ao passar defronte da famosa estação
de trens da "Gretoeste", surgiam novamente os vendedores ambulantes e
aqueles das barraquinhas anunciando seus produtos chegados agora mesmo no
último trem da linha norte.
No pátio interno da estação, do outro
lado do paredão, ficavam as "Marias Fumaça", chiando e recebendo
algum tratamento mecânico antes de se atrelar novamente aos seus vagões, para
mais uma viagem ao interior pernambucano.
Na pracinha em frente à estação
estava o eterno vendedor de abacaxi descascado com arte, sem deixar nem sequer
um espinho na sua polpa, sempre cortados em quatro partes com um pauzinho
espetado para se poder ir comendo no caminho ou sentado no local, na sombra dos
enormes pés (Arvores) de fícus Benjamin que arborizavam o local.
As pilhas de abacaxi de cor verde
(muitas vezes meio ácido, bom pra refresco) e os de cor amarela, doces como mel
e de um aroma que se alastrava até a Ponte Velha, lá pro lado da Boa Vista.
Estes abacaxis estavam à espera dos
compradores em atacado para leva-los para outras feiras no Recife e nos
arrabaldes. O cheiro era embriagador!
No outro lado, na calçada oposta,
estavam as pilhas de melancias de Pesqueira. As de estrias claras na casca,
nunca foram muito doce, porem os judeus sempre apreciaram esta variedade de
casca grossa.
As outras provenientes de Escada eram
melancias enormes de casca verde escuro, algo mais doce que as outras de
estrias, porém com muita semente. Era comendo e cuspindo.
A zona de produção de melancias em
Pernambuco era mormente chuvosa e desta forma a fruta nunca alcançava a doçura
das melancias de regiões mais secas, sei lá, pode ser.
Destas de casca grossa, algumas donas
de casa judias faziam conservas, assim como, de pepinos ou pimentões, técnica
trazida da longínqua Europa de invernos frios e judeus pobres, que comiam no
inverno, casca de melancia conservada no vinagre e sal. Creiam-me, provei e é uma
conserva deliciosa. Casca de melancia. Vejam o que faz a necessidade, assim é a
vida.
Pilhas de manga rosa, espada e
manguitos diversos, que vinham de Prazeres e Engenho do Meio, tinha para todos
os gostos dos clientes.
Encostados e pendurados no paredão da
Estação Central estavam os quadros de pintores locais com suas "obras
primas". Pinturas "inocentes" em aquarela, óleo, e até material
mais sofisticado (butique, esmalte, etc.), estava estampado o nordeste
brasileiro, sua gente, seus bichos, as plantações, as danças da roça e a
exuberante vegetação tropical.
Parece que o Sertão com suas
periódicas secas e os resultados funestos por ela causada, "a terra nua
ardendo, carcaças de animais", os "paus de arara", o êxodo
rural, a fome, os olhos tristes do sertanejo, não eram modelo ideal para estas
pinturas "inocentes". Não constavam ou não eram temas para vendas
rentáveis.
Estava presente quase sempre o
vendedor de galinhas vivas da raça carijó, estas de pescoço pelado e vermelhão.
Mais de lado, debaixo de um fícus
frondoso, mode a sombra, um "montão" de gaiolas cheias de passarinhos
dos mais diversos, que eram pegos em alçapões (feitos de "barba de
bode", um capim rústico e lenhoso). Vinha de todo o nordeste e eram
vendidos a preços irrisórios. Os mais procurados eram os papagaios (louros e se
fosse falador, o preço ia lá pra cima), canários, galos de campina, e
periquitos. Nunca faltou mercadoria nem compradores. Era o tempo que o
nordeste tinha seu habitat vegetal quase intocável e isso dava muito passarinho.
Estavam ali presentes os vendedores
de loterias estadual e nacional, vendendo ilusões.
Era muito comum encontrar também os
vendedores de letras das músicas populares da época. Esta mercadoria sempre foi
muito procurada pelo público, pois "cantores de banheiro" sempre
houve no Recife romântico daquela época.
Nesta área, estavam presentes os
repentistas ou violeiros sertanejos, dando um concerto da sua arte, angariando
uns tostões para comprar cordas rebentadas dos seus violões e o almoço num bar
junto da Ponte Velha.
Tudo se vê pelas janelas da fubica do
seu Simeão que vai rodando pelas ruas do Recife.
Atravessa a Ponte Velha, de lá se vislumbrava toda a beleza da cidade entre ao rios e pontes, não tenham duvida ela era mesmo a Veneza Brasileira.
Atravessa a Ponte Velha, de lá se vislumbrava toda a beleza da cidade entre ao rios e pontes, não tenham duvida ela era mesmo a Veneza Brasileira.
Na vazante do Capibaribe, dezenas de
"catadores" de siris. Eles, assim como as suas próprias vidas,
estavam atolados na lama do rio até meia canela, procurando tirar desta, o seu
mísero ganha pão diário. Logo que tinham "caçado" duas dúzias
desses "bichos", saiam com eles pendurados em ráfia e cobertos com a
própria lama do rio.
Psicologia de "pesca
siris", dar-lhe a sensação que ainda não chegou à hora e os
"bichinhos" estão, todavia nas "locas" do rio Capibaribe.
Acho que nem Freud pensou nesta situação para evitar o funesto pensamento dos
siris e caranguejos que mais um pouco estarão sendo jogados num caldeirão de
água fervendo, então para que antecipar a agonia, a lama cobrindo os coitados
seria o melhor dos remédios. Ta vendo seu Freud, como o nosso matuto é astuto?
E muito!
A vegetação exuberante para todo lado
que se olhava, vazantes e enchentes, maré alta e maré baixa, jangadas de pau
balsa e velas de sacos de sal ou açúcar, barcaças no meio do rio e dois fortes
tirando areia para construção civil, pontes pra "dar e vender" e uma
delas até giratória, a primeira do Brasil.
Bondes para todo canto, fubicas*
(Ford Bigode do ano 29), corso de carnaval, frevos para o folião, gente pacata
e acolhedora do Recife, será que hoje ainda é assim?
A fubica fumaçando, seguia pela Rua
Velha e já - já chegaríamos à Praça Maciel Pinheiro e ao endereço solicitado.
Levou tempo, pois seu Simeão era
muito conversador e os passageiros gostavam da conversa fiada dele.
Ao passar pelos Correios e Telégrafos
estava um grupo grande de gente discutindo e lendo uns comunicados que os
funcionários de vez em quando colavam no quadro de avisos.
-"Que
aconteceu? Alguma greve?", perguntou o
passageiro.
-"Não senhor, neste tempo de Getúlio, ninguém tem coragem de fazer greve,
oxente!"
-"Então
o que é esta balburdia nas portas dos Correios?"
-"Olhe,
foi uma coisa séria", responde meio
sem jeito o senhor Simeão, "afundaram
um comboio de barcos brasileiros que estavam transportando tropas para reforçar
as posições dos americanos no nordeste. Falam muito num tal Baependi, não sei
se é o almirante da esquadra ou o nome de um dos barcos".
-"E
quem os afundou senhor Simeão?"
-"Dizem
que foram os submarinos alemães nazistas e depois que torpedearam, subiram
"os filhos da peste, safados" à tona e metralharam os sobreviventes,
para não deixar testemunhas!"
-"Quando
foi isso?"
-"Não
sei não, acho que foi essa noite! Agora com sua licença podemos estacionar na
porta da sua casa?"
-"Pois
não seu chofer, tire a minha maleta, aqui está o que combinamos dois contos de
réis, está certo? Conte, conte, nunca confie, ta ouvindo?
Sabe de
uma coisa, ainda não encontrei meus parentes no Recife e já estou com saudades
do meu Cabrobó."
O chofer coloca o dinheiro recebido
numa capanga feita em Bezerros, coça a cabeça e responde:
-"Olhe
seu doutor, não se chora pelo leite despejado (derramado), saudade é uma
virtude e o que será, será! Assim dizia o sábio Rei dos judeus, Salomão".
Não sei vocês minha gente que
terminaram agora de ler esta crônica do "tempo da onça", mas eu
confesso, não consigo reter as lagrimas.
Eita tempo gostoso de quando éramos
felizes e não sabíamos.
Fim de estória.
*FUBICA: Dizem que é uma
"corruptela" do diminutivo da palavra Ford, será?
FORD, fordico, furdica, fubica e aí
ficou.
Mas que era uma obra de arte, não
tenham duvidas. Serviu de "Carro Escola", até nos anos 50. Num deles
tirei a minha carteira de habilitação.
Quando encostei o carro na calçada ao
terminar o exame, me disse o examinador algo que não esquecerei nunca mais: Seu Paulo, agora vou exigir que a
prefeitura do Recife troque todos os postes de metal por postes de borracha.
Assine logo aqui, o senhor é um verdadeiro "munheca de pau".
Ai meu Deus, quase choro de desgosto.
Porém a licença brasileira para
dirigir, revalido em todo o canto do mundo, pois não ficou registrado nela que
sou um "munheca de pau", ainda bem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário