O QUE SE ESCONDE ATRÁS DO CASO MARCO FELICIANO
DA COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS
Magali do Nascimento Cunha
Nestes meses de março e abril de 2013 temos lido,
ouvido e assistido a um episódio sem precedentes no Congresso Nacional, que
coloca em evidência a relação religião-política-mídia. Em 5 de março foi
anunciada pelo Partido Socialista Cristão (PSC), a indicação do membro de sua
bancada o pastor evangélico deputado federal Marco Feliciano (SP) como
presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal (CDH). Foram
imediatas as reações de grupos pela causa dos Direitos Humanos ao nome de Marco
Feliciano, com a alegação de que o deputado era conhecido em espaços midiáticos
por declarações discriminatórias em relação a pessoas negras e a homossexuais.
O PSC se defendeu dizendo que seguiu um protocolo que lhe deu o direito de
indicar a presidência dessa comissão, um processo que estava dentro dos
trâmites da democracia tal como estabelecida no Parlamento brasileiro. Isto,
certamente, é fonte de reflexões, em especial quanto ao porquê da defesa dos
Direitos Humanos ser colocada pelos grandes partidos como “moeda de troca
barata”, como bem expôs Renato Janine Ribeiro em artigo publicado no
Observatório da Imprensa (n. 740, 2/4/2013). Soma-se a isto o fato de o
deputado indicado e o seu partido não apresentarem qualquer histórico de
envolvimento com a causa dos Direitos Humanos que os qualificassem para o
posto.
O que tem chamado a atenção neste caso, e que é
objeto desta reflexão, é a “bola de neve” que ele provocou a partir das reações
ao nome do deputado, formada por protestos públicos da parte de diversos segmentos
da sociedade civil, mais a criação de uma frente parlamentar de oposição à
eleição de Feliciano, e pelo estabelecimento de uma guerra religiosa entre
evangélicos e ativistas do movimento de lésbicas, gays, bissexuais e
transgêneros (LGBT), e entre evangélicos e não-cristãos. E esta bola de neve é
produto de fatores que se apresentam para além da CDH, e a expõem como um
elemento a mais no complexo quadro da relação entre religião e sociedade no
Brasil. Pensemos um pouco sobre estes fatores; vamos elencar quatro.
1. A reconfiguração do lugar dos
evangélicos na política
Desde o Congresso Constituinte de 1986 e a formação
da primeira Bancada Evangélica e seus desdobramentos, a máxima “crente não se
mete em política” construída com base na separação igreja-mundo foi sepultada.
A máxima passou a ser “irmão vota em irmão”.
Depois de altos e baixos em termos numéricos,
decorrentes de casos de corrupção e fisiologismo, a bancada evangélica se
consolidou como força no Congresso Nacional, o que resultou na criação da
Frente Parlamentar Evangélica (FPE) em 2004, ampliada nas eleições de 2010 para
73 congressistas, de 17 igrejas diferentes, 13 delas pentecostais. Os
parlamentares evangélicos não são identificados como conservadores, do ponto de
vista sociopolítico e econômico, como o é a Maioria Moral nos Estados Unidos,
por exemplo. Seus projetos raramente interferem na ordem social e se revertem
em “praças da Bíblia”, criação de feriados para concorrer com os católicos,
benefícios para templos. Basta conferir o perfil dos partidos aos quais a
maioria dos políticos evangélicos está afiliada e os recorrentes casos de
fisiologismo.
Mais recentemente é o forte tradicionalismo moral
que tem marcado a atuação da FPE, que trouxe para si o mandato da defesa da
família e da moral cristã contra a plataforma dos movimentos feministas e de
homossexuais, valendo-se de alianças até mesmo com parlamentares católicos
tradicionalistas, diálogo impensável no campo eclesiástico.
Os números do Censo 2010 são fonte para a demanda
de legitimidade social entre os evangélicos, e certamente de conquista de mais
espaço de influência. Estudos mostram que desde 2002, período da legislatura em
que a FPE foi criada, a cada eleição, o número de evangélicos no Parlamento
(Câmara e Senado) aumenta em torno de 30% do total anterior. A estimativa,
mantido este índice, é de chegarem a 100 cadeiras em 2014, o que representaria
em torno de 20% das 513 do Congresso, refletindo a representatividade dos
evangélicos no Brasil revelada pelo Censo 2010. Este é um projeto cada vez mais
nítido deste segmento social que certamente visa, como os demais grupos
políticos, muito mais do que cadeiras no Congresso, mas também presidências de
comissões e de ministérios relevantes (para além do único atual tímido Ministério
da Pesca, sob a liderança do bispo da Igreja Universal do Reino de Deus Marcelo
Crivela).
A polêmica com Marco Feliciano deixa este projeto
em evidência, já que não só uma presidência inédita de comissão foi alcançada,
mas também maior visibilidade aos evangélicos na política e ao próprio PSC, que
tem o nome “Cristão”, mas sempre se caracterizou como um partido de aluguel
para quem desejasse candidatura independentemente de confissão de fé. Pelo fato
de estar nas manchetes durante semanas, o PSC já prevê que Feliciano, eleito
com 212 mil votos por São Paulo em 2010, se tornará um “campeão de votos” nas
próximas eleições, podendo atingir um milhão de votos, e ainda alavancará a
candidatura do pastor Everaldo Pereira (PSC/SP) a presidente da República. Aliado
de Marco Feliciano, o pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas
Malafaia, figura sempre presente nas mídias, declarou: “Se o Feliciano tiver
menos de 400 mil votos na próxima eleição, eu estou mudando de nome”.
Mais uma vez, é possível afirmar que a cada novo
episódio, a relação evangélicos- política é dinâmica complexa que inclui
disputas por poder e hegemonia no campo religioso, ambição dos políticos que
veem no pragmatismo dos evangélicos fonte para suas barganhas de campanha,
concorrência de grupos que competem por poder sociopolítico e econômico como as
empresas de mídia, como veremos adiante.
2. O conservadorismo de Marco
Feliciano e de seus “soldados”
A imagem dos “evangélicos” foi construída
fundamentalmente com base na identidade de dois grupos de cristãos
não-católicos: os protestantes de diferentes confissões que chegaram ao Brasil
por meio de missões dos Estados Unidos, a partir da segunda metade do século
XIX, e os pentecostais, que aportaram em terras brasileiras na primeira década
do século XX, vindos daquele mesmo país. Esta imagem sempre mostrou ao Brasil
um segmento cristão predominantemente conservador teologicamente, marcado por
um fundamentalismo bíblico, um dualismo que separava a igreja do “mundo”/a
sociedade e um anticatolicismo.
Desta forma, não é surpresa que um pastor
evangélico, no caso Marco Feliciano, reproduza em seus sermões modernos e de
forte apelo emocional, uma abordagem teológica tão antiga como a que embasa a
ideologia racista, por meio da leitura fundamentalista de textos do Gênesis que
contêm a narrativa da descendência de Noé. Também não é surpresa que Marco
Feliciano conduza sua reflexão teológica por meio de bases que justifiquem a
existência de um Deus Guerreiro e Belicoso, que tem ao seu redor anjos
vingadores, que destrói do Titanic a John Lenon ou aos Mamonas Assassinas,
continuando o que já fazia com os povos africanos herdeiros do filho de Noé, e
que, nesta linha, certamente fará aos que assumem e apregoam o homossexualismo.
Menos surpreendente é ainda que o líder religioso reaja a quem lhe faz oposição
ou tenha posição diferente da sua classificando-o como agente do diabo e assim
foram sinalizadas a própria formação anterior da Comissão de Direitos Humanos e
celebridades como o cantor Caetano Veloso.
Quem se surpreende com o que Feliciano diz e com o
apoio que ele recebe de diversos segmentos evangélicos desconhece o DNA deste
grupo. Não há nada de novo aqui. O que há é maior visibilidade pela projeção
que a mídia religiosa e não-religiosa têm dado a este discurso. Em 2010, por
exemplo, o pastor estadunidense Pat Robertson, dono de um canal de televisão,
declarou que o trágico terremoto no Haiti naquele ano era consequência de um
pacto dos haitianos com o diabo no passado para se tornarem independentes da
França. A declaração de Robertson, amplamente veiculada, provocou manifestações
contrárias em todo o mundo. As palavras de Marco Feliciano no Brasil de 2013
são apenas o eco da mesma teologia.
Há algo novo, sim, neste processo, relacionado à
articulação dos apoios a Feliciano que coloca em evidência o conservadorismo,
antes atribuído mais diretamente aos evangélicos, que reflete uma tendência
forte na sociedade brasileira de um modo geral.
É nesse contexto que o deputado Jair Bolsonaro
(PP-RJ), suplente da CDH, afirmou que se sente como “irmão” do presidente da
comissão. “Como capitão do Exército, sou um soldado do Feliciano”, declarou
Bolsonaro, em matérias divulgadas pelas mídias em 27 de março, e acrescentou:
“A agenda antes era outra, de uma minoria que não tinha nada a ver. Hoje,
representamos as verdadeiras minorias. Acredito no Feliciano, de coração. Até
parece que ele é meu irmão de muito tempo. Não sinto mais aquele cheiro
esquisito que tinha aqui dentro e aquele peso nas costas. Aqui, era uma
comissão que era voltada contra os interesses humanos, contra os interesses das
crianças e contra os interesses da família. Agora, essa comissão está no
caminho certo. Parabéns, Feliciano”.
O deputado Bolsonaro tem um histórico de
posicionamentos racistas e de conflito com ativistas sociais e militantes de
movimentos gays. Em novembro de 2011, ele chegou a pedir, da tribuna da Câmara,
à presidente Dilma Rousseff para que ela assumisse se gostava de homossexuais.
Em março do mesmo ano, respondeu que “não discutiria promiscuidade” ao ser
questionado em um programa de TV pela cantora Preta Gil sobre como reagiria
caso o filho namorasse uma mulher negra.
No campo das igrejas, o já citado pastor Silas
Malafaia, conhecido por polêmicas midiáticas desde a campanha presidencial de
2010, se alistou nas fileiras do deputado Feliciano e se tornou seu árduo
defensor e colaborador desde o início da controvérsia da presidência da CDH.
Até a Igreja Católica, explícita em suas posições quanto à ampliação de
direitos civis de homossexuais, mas clássico “inimigo” dos evangélicos, é
colocada por Feliciano na lista de aliados. Em entrevista à TV Folha-UOL
(2/4/2013), o deputado explicitou: “Tenho alguns contatos com algumas pessoas
da CNBB, mas com os grandes líderes do movimento católico não tive contato até
porque quase não tenho tempo. Acredito que, nesse momento, todos eles me
conhecem até porque o que eu sofro hoje de perseguição dado ao movimento LGBT,
a Igreja Católica sofre isso no mundo todo. Inclusive, o novo papa, o papa
Francisco, na Argentina quase foi linchado por esse grupo. Então, nós temos
algumas coisas que, acredito, nos fazem pensar igual.(…) Eu fiquei feliz por
termos ali um papa que ainda é bem ortodoxo, é bem conservador e que prima por
aquilo eu acredito também, que a família é a base da sociedade. Aliás, a
família é antes da sociedade”.
Estas alianças estão produzindo efeitos até na
qualidade do discurso de Marco Feliciano. Os benefícios proporcionados pela
aproximação com lideranças mais experientes ficam evidentes nas mudanças no
discurso do deputado como: “Só saio da presidência da CDH morto” para “Só saio
da presidência da CDH se os deputados condenados pelo julgamento do mensalão,
José Genoíno e João Paulo Cunha, deixarem a Comissão de Constituição e
Justiça”. Com isso, Feliciano atraiu para si a simpatia da mídia que se fartou
na cobertura do julgamento do Superior Tribunal de Justiça e de segmentos
conservadores, que, embora não concordem com seu nome na presidência da CDH,
querem “a cabeça” dos condenados. Feliciano usa uma controvérsia ética para
justificar a controvérsia de sua própria eleição – a CDH como moeda de troca
partidária.
Alianças do religioso com o não-religioso formando
exércitos que marcham em defesa da moral e dos bons costumes – em defesa da
família – não é algo novo no Brasil, mas é bastante novo no espaço político que
envolve os evangélicos e suas conquistas na esfera pública. Em matéria na Folha
de São Paulo, de 7/4/2013, o diretor do instituto de pesquisa Datafolha, Mauro
Paulino, declarou que o discurso de Feliciano atinge preocupações de parte da
população: “Entre os brasileiros, 14% se posicionam na extrema direita. As
aparições na imprensa dão esse efeito de conferir notoriedade a ele.” Isto
significa que apesar dos tantos slogans divulgados em manifestações presenciais
e nas redes sociais – “Feliciano não me representa” – Feliciano, Bolsonaro e
tantos outros são eleitos e ganham espaço e legitimidade. Portanto, há quem se
sinta representado, sim, não somente do ponto de vista da popularidade mas do
peso das articulações ideológicas em curso na sociedade brasileira.
3. Inimigos, um componente do
imaginário evangélico
Exércitos precisam de inimigos. A teologia de um
Deus Guerreiro e Belicoso sempre esteve presente na formação fundamentalista
dos evangélicos brasileiros, compondo o seu imaginário e criando a necessidade
da identificação de inimigos a serem combatidos. Historicamente a Igreja
Católica Romana sempre foi identificadas como tal e sempre foi combatida no
campo simbólico mas também no físico-geográfico. Da mesma forma as religiões
afro-brasileiras também ocupam este lugar, especialmente, no imaginário dos
grupos pentecostais.
Periodicamente, estes “inimigos” restritos ao campo
religioso perdem força quando ou se renovam, como é o caso da Igreja Católica,
a partir dos anos de 1960, ou quando aparecem outros que trazem ameaças mais
amplas. Assim foram interpretados os comunistas no período da guerra fria no
mundo e da ditadura militar. Há também um imperativo imaginário de se atualizar
os combates, quando a insistência em determinados grupos leva a um desgaste da
guerra. Durante o processo de redemocratização brasileira nos anos 80, o espaço
que vinha sendo conquistado pelo Partido dos Trabalhadores, interpretado como nítido
representante do perigo comunista, foi reconhecido como ameaça e campanhas
evangélicas contra o PT reverberaram de forma religiosa o que se expunha nas
trincheiras da política.
Com o enfraquecimento do ideal comunista nos anos
90 e com o PT chegando ao poder nacional com o apoio dos próprios evangélicos,
a força das construções ideológicas estadunidenses abriu lugar à atenção à
ameaça islâmica e houve algum espaço entre evangélicos no Brasil para discursos
de combate ao islam. No entanto, como esta ameaça está bem distante da
realidade brasileira – não se configura um inimigo tão perigoso nestas terras
-, emerge, mais uma vez, o imperativo de se atualizar os combates. Não mais catolicismo,
nem comunismo, não tanto islamismo… quem se configuraria como novo inimigo?
Desta vez, um inimigo contra a religião e seus princípios, contra a Bíblia,
contra Deus, contra o Brasil e as famílias: o homossexualismo.
Declarações de Marco Feliciano na mídia noticiosa
expressam bem este espírito belicoso: “É um assunto tão podre! Toda vez que se
fala de sexo entre pessoas do mesmo sexo ninguém quer colocar a mão, porque é
podre. Por causa disso, um grupo de 2% da população – os gays – consegue se levantar
e oprimir uma nação com 90% de cristãos, entre católicos e evangélicos, e até
pessoas que não têm religião, mas que primam pelo bem-estar da família, pelo
curso natural das coisas” (Rede Brasil Atual, 1/3/2013). “Existe uma ditadura
chamada (…) “gayzista”. Eles querem impor o seu estilo de vida e a sua condição
sobre mim. E eles lutam contra a minha liberdade de pensamento e de expressão.
Eles lutam pela liberdade sexual deles. Só que antes da liberdade sexual deles,
que é secundária, tem que ser permitida a minha liberdade intelectual. A minha
liberdade de expressão. Eu posso pensar. Se tirarem o meu poder de pensar, eu
não vivo. Eu vegeto e morro”. (TV Folha-UOL, 2/4/2013).
Consequência da eleição de inimigos e do combate a
eles é o discurso de que há uma perseguição a quem se faz contrário, promovida
pelo maior inimigo de Deus, Satanás. Esta ideia está claramente presente em
afirmações de Feliciano como: “Eu morro, mas não abandono minha fé”; “A
situação está tomando dimensões muito estranhas. É assustador, estou me
sentindo perseguido como aquela cubana lá. Como é o nome? A Yoani Sánchez”; “Se
é para gritar, tem um povo que sabe o que é grito. [...] Nós (evangélicos)
sabemos qual é o poder da nossa fé.”
A insistência da mídia noticiosa em enfatizar a
guerra Feliciano-homossexuais, com o lado “inimigo” representado por um
deputado, na mesma condição do primeiro, Jean Wyllys (PSOL/RJ), ativista do
movimento LGBT, só faz reforçar a reconstrução do imaginário evangélico da
guerra aos inimigos e da perseguição consequente. Isso tem gerado manifestações
diversas de apoio a Feliciano entre evangélicos dos mais diferentes segmentos e
ações como a da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB),
realizada em Brasília neste abril, que aprovou uma moção de apoio a Feliciano,
aprovada em votação simbólica por unanimidade. Feliciano agradeceu o apoio
dizendo que “nunca houve uma comissão com tanta oração. Os pastores estão
orando pela minha vida e pela comissão. Venceremos esta batalha”.
Há ainda uma explosão de postagens em nas mídias
digitais, em especial nas redes sociais. Por exemplo, uma montagem com foto de
Marco Feliciano com uma faixa presidencial tem sido veiculada por usuários do
Facebook, e, na primeira semana de abril já havia superado a marca de 65 mil
compartilhamentos. A campanha pede que favoráveis à candidatura do pastor à
presidência da República em 2014 compartilhem a imagem para demonstrar força
nas redes sociais: “Campanha urgente: Marco Feliciano presidente do Brasil”,
diz o texto.
Uma segunda imagem com comparações entre Marco
Feliciano e Jean Wyllys também veiculada no Facebook, já havia superado 100 mil
compartilhamentos em meados de abril, registrando mais de 7,5 mil comentários.
Na imagem, há dados sobre o número de votos de cada um dos deputados, além de
comparações entre as bandeiras políticas defendidas por cada um deles. A imagem
quando compartilhada revela declarações pessoais de quem “curtiu” com texto que
manifesta apoio ao pastor Feliciano: “Eu sou cristão, a favor da democracia, da
vida e da família brasileira. Marco Feliciano me representa”.
A declaração de Silas Malafaia à Folha de São Paulo
(7/4/2013) sobre a repercussão do caso entre os evangélicos e simpatizantes
reflete bem este espírito: “Quero agradecer ao movimento gay. Quanto mais tempo
perderem com o Feliciano, maior será a bancada evangélica em 2014″.
Toda e qualquer análise e ação em torno da presença
dos evangélicos nas mídias e na política não pode ignorar esta dimensão do
imaginário da necessidade da criação de inimigos e da consequente perseguição.
Isto é característico de religiões numericamente não-majoritárias, sendo
portanto, fruto, entre outros aspectos, do caráter minoritário da presença
evangélica em terras brasileiras.
4. As transformações e as
revelações na relação mídia-religião
O histórico da presença evangélicas nas mídias
não-religiosas no Brasil revela a hegemonia católica-romana que vem pouco a
pouco sendo diminuída por conta do espaço que os evangélicos vêm conquistando
na esfera pública. Enquanto católicos sempre apareceram para expressar sua fé
nas datas clássicas do calendário religioso e para se manifestar sobre temas
amplos, à exceção dos casos controversos inevitáveis como a pedofilia praticada
por clérigos, cuidadosamente tratados, evangélicos tinham espaço garantido
quando se tratava de escândalos de corrupção ou situações bizarras.
Na última década, a expressiva representatividade
dos evangélicos no país com o consequente declínio do catolicismo, e a
ampliação de sua presença nas mídias e na política, torna este segmento não só
visível mas um alvo mercadológico. As mídias passam a prestar a atenção no
segmento e na lucratividade possível, em torno da cultura do consumo vigente.
Um exemplo ilustrativo se dá quando um personagem,
por vezes protagonista, por vezes coadjuvante, como o pastor Silas Malafaia, que
assume o papel da pessoa controvertida em todo este contexto e constrói sua
imagem midiática como “aquele que diz as verdades”, é convidado para uma
conversa com o vice-diretor das Organizações Globo, João Roberto Marinho
(PINHEIRO, Daniela. Vitória em Cristo. Revista Piauí, n. 60, set 2011). Aí é
possível identificar o patamar em que se encontra o segmento evangélico nas
mídias. Segundo depoimento do pastor depois da conversa, Marinho teria alegado
precisar conhecer mais o mundo dos evangélicos já que a emissora teria
percebido que Edir Macedo não seria “a voz” dos protestantes no Brasil. O
pastor Malafaia ganhou, então, trânsito em um canal destacado de comunicação e
teve várias aparições no programa de maior audiência da Rede Globo, o Jornal
Nacional.
Além do contato com Malafaia, as Organizações
Globo, por meio da gravadora Som Livre, já contrataram grandes nomes do mercado
da música evangélica que têm, a partir daí, espaço garantido na programação da
Rede Globo. A Globo tirou da Rede Record, em 2011, o evento de premiação dos
melhores da música evangélica, tendo criado o Troféu Promessas. A Rede Globo é
também, a partir de 2011, patrocinadora de eventos evangélicos como a Marcha
para Jesus e de festivais gospel. Noticiário inédito do mundo evangélico tem
ganhado espaço na Rede, como por exemplo, a matéria sobre a reeleição de José
Wellington Bezerra à presidência da Convenção Geral das Assembleias de Deus
veiculada em matéria de 1’44 no Jornal da Globo, de 1’52 na Globo News, em 11
de abril, além de nota na CBN e no portal G1.
Neste contexto, o caso Marco Feliciano tem sido
amplamente tratado pela grande mídia. Feliciano já foi entrevistado por todos
os grandes veículos de imprensa e já participou dos mais variados programas de
entretenimento – de talk-shows a games. Foi tratado com simpatia na entrevista
de Veja e defendido pelo jornalista Alexandre Garcia em comentário na Rádio
Metrópole (5/4/2013) com o argumento de “liberdade de opinião”. Fica nítido que
estes veículos não desprezam a dimensão do escândalo e da bizarrice relacionada
ao caso, somada à atraente questão da homossexualidade que mexe com as emoções
e paixões humanas e expõe a vida íntima de celebridades, como o caso da cantora
Daniela Mercury que veio à tona na trilha desta história.
No entanto, o amplo espaço dado para que Feliciano
e seus aliados exponham seus argumentos e sejam exibidos como simpáticos bons
sujeitos revela que estas personagens ganham um tratamento bastante afável em
comparação à execração imposta a outras em situações críticas da política
brasileira, como a que envolveu os parlamentares do PT. Não temos aqui apenas
os evangélicos como um segmento de mercado a ser bem tratado, mas, retomando a
constatação de que Feliciano, Malafaia e Bolsonaro representam uma parcela conservadora
da sociedade brasileira, é possível que haja uma identidade entre estes líderes
e quem emite e produz conteúdos das mídias. Afinal, é a mesma mídia que
constrói notícias sobre crimes protagonizados por crianças e adolescentes de
forma a promover uma “limpeza” das cidades por meio de campanha por redução da
maioridade penal no Brasil, ou que veicula programas que trazem enquetes
durante um noticiário sobre crimes urbanos que indagam: “Ligue XXX ou YYY para
indicar qual pena merece o criminoso? XXX para prisão ou YYY para morte”.
São transformações na relação mídia e religião, com
efeitos políticos, que merecem ser monitoradas e esclarecidas, tendo em vista a
complexidade das relações sociais, em especial no que diz respeito à religião,
e que devem ser potencializadas no ano eleitoral que se aproxima.
Um paradigma
O caso Marco Feliciano pode ser considerado um
paradigma pelo fato de ser a primeira vez na história em que os evangélicos se
colocam como um bloco organicamente articulado, com projeto temático definido:
uma pretensa defesa da família. Com a polarização estimulada pelas mídias entre
o deputado Feliciano e ativistas homossexuais foi apagada a discussão de origem
quanto à indicação do seu nome em torno das afirmações racistas e de seu total
distanciamento da defesa dos direitos humanos.
Torna-se nítida uma articulação política e
ideológica conservadora em diferentes espaços sociais – do Congresso Nacional
às mídias – que reflete um espírito presente na sociedade brasileira, de reação
a avanços sociopolíticos, que dizem respeito não só a direitos civis
homossexuais e das mulheres, como também aos direitos de crianças e
adolescentes, às ações afirmativas (cotas, por exemplo) e da Comissão da
Verdade, e de políticas de inclusão social e cidadania. Nesta articulação a
religião passa a ser instrumentalizada, uma porta-voz.
A postagem de um pastor de uma igreja evangélica no
Facebook reflete bem este espírito: “Devemos nos unir cada vez mais, já somos
milhões de evangélicos no Brasil, fora os simpatizantes. Temos força, é claro
que nossa força vem de Deus. Precisamos nos mobilizar contra as forças das
trevas, que querem desvirtuar os bons costumes e a moral e, principalmente que
querem afetar a honra da família. Se o meu povo que se chama pelo meu nome se
humilhar e orar, não tem capeta que resista”. E as palavras de Marco Feliciano
ecoam como profecia: “Graças a Deus permanecemos firmes até aqui. Chegará o
tempo que nós, evangélicos, vamos ter voz em outros lugares. O Brasil todo
encara o movimento evangélico com outros olhos”.
Nesse sentido é possível afirmar que os grupos
políticos e midiáticos conservadores no Brasil descobriram os evangélicos e o
seu poder de voz, de voto, de consumo e de reprodução ideológica. A ascensão de
Celso Russomano nas eleições municipais de São Paulo, em 2012, já havia sido
exemplar: um católico num partido evangélico, apoiado por grupos evangélicos os
mais distintos. A eleição da presidência da CDH é paradigmática no campo
nacional e ainda deve render muitos dividendos a Feliciano, ao PSC, à Bancada
Evangélica e a seus aliados. O projeto político que se desenha, de fato, pouco
ou nada tem a ver com a defesa da família… os segmentos da sociedade civil,
incluindo setores evangélicos não identificados com o projeto aqui descrito,
que defendem um Estado laico e socialmente justo, têm grandes tarefas pela
frente.
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Magali do
Nascimento Cunha é jornalista, doutora em Ciências da Comunicação, professora
da Universidade Metodista de São Paulo e autora do livro A Explosão Gospel. Um
Olhar das Ciências Humanas sobre o cenário evangélico contemporâneo (Ed. Mauad)
publicou um estudo esclarecedor sob o titulo “O Caso Marco Feliciano:um
paradigma na relação mídia-religião-políitca”. Ela desvenda, numa análise
minuciosa, o jogo político que se esconde atrás da discussão da permanência ou
não do Pastor Marco Feliciano na Comissão dos Direitos Humanos da Câmara
Federal. Este texto ajudará a muitos a entender as causas ocultas da
resistência dele e os objetivos políticos presumivelmente almejados pela
bancada evangélica na Câmar dos Deputados. O texto pode ser encontrado em: www.midiareligiaopolitica.blogspot.com.br Lboff
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