SOBRE A MORTE E O MORRER
Rubem
Alves
O que
é vida? Mais precisamente, o que é a vida de
um ser humano? O que e quem a define?
um ser humano? O que e quem a define?
Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que
sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: "Morrer, que me importa?
(...) O diabo é deixar de viver." A vida é tão boa! Não quero ir embora...
Eram 6h. Minha filha me acordou. Ela tinha três
anos. Fez-me então a pergunta que eu nunca imaginara: "Papai, quando você
morrer, você vai sentir saudades?". Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela
entendeu e veio em meu socorro: "Não chore, que eu vou te abraçar..."
Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde mora a saudade.
Cecília Meireles sentia algo parecido: "E eu
fico a imaginar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega... O
que será, talvez, até mais triste. Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre
humanas companhias... Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem
recurso. Que pena a vida ser só isto...”
Da. Clara era uma velhinha de 95 anos, lá em Minas.
Vivia uma religiosidade mansa, sem culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe
lia a Bíblia. De repente, ela fez um gesto, interrompendo a leitura. O que ela
tinha a dizer era infinitamente mais importante. "Minha filha, sei que
minha hora está chegando... Mas, que pena! A vida é tão boa...”
Mas tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir
acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo,
contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais
dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas
comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom
seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores,
longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza.
Mas a medicina não entende. Um amigo contou-me dos
últimos dias do seu pai, já bem velho. As dores eram terríveis. Era-lhe
insuportável a visão do sofrimento do pai. Dirigiu-se, então, ao médico:
"O senhor não poderia aumentar a dose dos analgésicos, para que meu pai
não sofra?". O médico olhou-o com olhar severo e disse: "O senhor
está sugerindo que eu pratique a eutanásia?".
Há dores que fazem sentido, como as dores do parto:
uma vida nova está nascendo. Mas há dores que não fazem sentido nenhum. Seu
velho pai morreu sofrendo uma dor inútil. Qual foi o ganho humano? Que eu
saiba, apenas a consciência apaziguada do médico, que dormiu em paz por haver
feito aquilo que o costume mandava; costume a que freqüentemente se dá o nome
de ética.
Um outro velhinho querido, 92 anos, cego, surdo,
todos os esfíncteres sem controle, numa cama -de repente um acontecimento
feliz! O coração parou. Ah, com certeza fora o seu anjo da guarda, que assim
punha um fim à sua miséria! Mas o médico, movido pelos automatismos
costumeiros, apressou-se a cumprir seu dever: debruçou-se sobre o velhinho e o
fez respirar de novo. Sofreu inutilmente por mais dois dias antes de tocar de
novo o acorde final.
Dir-me-ão que é dever dos médicos fazer todo o
possível para que a vida continue. Eu também, da minha forma, luto pela vida. A
literatura tem o poder de ressuscitar os mortos. Aprendi com Albert Schweitzer
que a "reverência pela vida" é o supremo princípio ético do amor. Mas
o que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem
a define? O coração que continua a bater num corpo aparentemente morto? Ou
serão os ziguezagues nos vídeos dos monitores, que indicam a presença de ondas
cerebrais?
Confesso que, na minha experiência de ser humano,
nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas de coração ou ondas
cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos
enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade
de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de
cigarra vazia.
Muitos dos chamados "recursos heróicos"
para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao
princípio da "reverência pela vida". Porque, se os médicos dessem
ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer:
"Liberta-me".
Comovi-me com o drama do jovem francês Vincent
Humbert, de 22 anos, há três anos cego, surdo, mudo, tetraplégico, vítima de um
acidente automobilístico. Comunicava-se por meio do único dedo que podia
movimentar. E foi assim que escreveu um livro em que dizia: "Morri em 24
de setembro de 2000. Desde aquele dia, eu não vivo. Fazem-me viver. Para quem,
para que, eu não sei...". Implorava que lhe dessem o direito de morrer.
Como as autoridades, movidas pelo costume e pelas leis, se recusassem, sua mãe
realizou seu desejo. A morte o libertou do sofrimento.
Dizem as escrituras sagradas: "Para tudo há o
seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer". A morte e a vida não
são contrárias. São irmãs. A "reverência pela vida" exige que sejamos
sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Cheguei a
sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a
"morienterapia", o cuidado com os que estão morrendo. A missão da
morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que
ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs. Já encontrei a
padroeira para essa nova especialidade: a "Pietà" de Michelangelo,
com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o morrer deixa de
causar medo.
Texto publicado no
jornal “Folha de São Paulo”, Caderno “Sinapse” do dia 12-10-03. fls 3.
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