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Mulher chorando – Portinari - 1947
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DE VENETA
Geraldo Bernardo
Passei todos os dias de minha existência, tramando algo. Não sei o quê.
Ainda hoje, busco descobrir esta ânsia que me apodera o ser e faz brotar
pensamentos adversos ao lugar comum, por exemplo.
Uma vingança, talvez. Um quase morrer que contamina o pensar. Uma revolta
que entala, vez por outra, se converte em lágrimas.
A primeira vez que tive uma sensação assim, tinha sete anos.
Eram quatro horas matutinas quando pegamos a estrada. Primeiro, fomos de
carroça de burro, das brenhas, do sopé da Serra das Araras, cortando riachos e
lamaçal. Quem conduzia era Seu Agostinho, matuto velho, padrinho de fogueira de
meu pai, confidente e parceiro em inúmeras peripécias etílicas e românticas.
Meu pai calado. No lastro da carroça uma mala vestida num saco, duas
caixas, uma delas eu sabia o que era: espécie de gergelim, feijão “galanjão”,
rapadura, arroz vermelho e muito carinho de Vozinha que mandava saudades e
quitutes para os filhos que já haviam emigrado. A outra caixa, segredo, coisa
de meu pai.
Por falar em coisa de meu pai, aquele era cheio de coisa, de tradição e
veneta. Não era coisa só de meu pai não, era coisa de família, imigrados
italianos, combatentes das vendettas, gente que outrora, no além mar,
havia sido nobre, meus tataravó. Cumpriram a sina de netos – viraram pobres –
meus avós.
Muito tempo depois entendi que aquelas chatices eram regras de etiqueta.
- Não mastigue com a boca aberta, menino! Parece um porco comendo. E tire
os cotovelos da mesa! Onde já se viu. – Vozinha era analfabeta, todos os seus
irmãos, tias, filhos, netos, todos enfim, analfabetos, mas, todos tinham modos
para comer, vestir, falar, apresentar-se, como se fossem nobres urbanizados.
Tradição oral, repassada com muita rigidez e cipoadas de pinhão roxo, nas
pernas e braços, jamais, “bater na cara de um filho ou filha”, “isto pode gerar
vingança de sangue”, foi este mandamento que Vozinha nos ensinou.
O bigode de meu pai era fino, combinava com a barbicha e o cabelo louro
cacheado sobre os ombros, olhos azuis que doíam, alto, parecia “um bichão” –
diziam alguns – usava chapéu de massa e camisa de “Volta ao Mundo”, encerrado
em suas divagações. Eu dava um doce para adivinhar o que ele pensava.
Seu Agostinho chicoteava o burro. O coitado do animal se espremia no cume
de suas forças, tentando subir um barranco, puxando a carroça com a gente em
cima, além da costumeira carga de tambores de leite para serem entregues na
estrada. Afora as chicotadas, os xingamentos aos berros. O velho Agostinho
estava enfezado:
- Com os seiscentos mil diabos, essa praga de burro sem futuro, não vai
subir.
- Deixa que eu desço. – era meu pai.
- Não precisa, vai sujar o sapato.
O sapato que Agostinho falava, era da moda, Cavalo de Aço, salto alto,
parece que tô vendo, meu pai se arrumando para sair, minha mãe com o bucho
pelas goelas, entufada, com os olhos inchados, tanto que havia chorado. Minha
avó cuidava dos arremates finais pra viagem e me obrigava a tomar banho, na
madrugada, para seguir com meu pai até a rua. Minha primeira saída de casa. Meu
pai assobiava e se perfumava depois de ter vestido a calça boca de sino e
amarrado o sapato novo de duas cores: branco e cor de café com leite (era como
a gente conhecia a cor bege, àquela época). Eu observava tudo e nada entendia.
Seu Agostinho desceu da carroça e se dirigia ao burro com mil palavrões,
decidiu ajudar empurrando a carroça enquanto meu pai assumiu o seu lugar. A
partir de então meu pai foi guiando até a estrada onde meu tio foi nos pegar
num jipe.
Na cidade tudo era muito diferente, na casa de meu tio provei, pela
primeira vez: pão assado na manteiga e leite com chocolate. Uma delícia parecia
não sei o quê, queimei a língua, mas, mesmo assim, no finzinho da caneca
parecia que nada mais existia no mundo a não ser eu e aquela coisa gostosa.
Fechei os olhos e me inundava no sabor do chocolate, quando ouvi meu pai:
- Simbora, acorda menino, parece um jumento morto, dormindo sentado, num
ta vendo que acabou?
Envergonhado e estarrecido de medo, devolvi o copo imediatamente à mesa e
encolhi-me no encosto da cadeira, pra ouvir minha tia torta dizer:
- Deixe o menino – depois olhou para mim, fez cara de piedade e continuou
– quer mais?
- Querer eu queria, ia dizer que não por educação, assim eu havia
aprendido, mas, antes de responder meu pai tomou a frente e respondeu por mim.
- Quer não, precisa não. Ele já comeu demais, parece até que não tem
vergonha, fica se mostrando na frente dos outros (os outros eram meus primos).
Ele também não está acostumado com essas coisas “afrescalhadas” que vocês comem
aqui na rua, vai que dá uma “caganeira” nesse infame.
Baixei ainda mais os olhos e fiquei parecendo vira lata que vai receber pancada.
Foi quando meu tio (graças a Deus) interveio e pôs ordem em tudo:
– Vamo simbora! Já tamo ficando atrasado.
Até a rodoviária, seguimos: meu pai – mudo como sempre –, meu tio que o
tempo todo dava conselhos e reprimendas em meu pai indiferente e eu, observando
todas as maravilhas daquele mundo fabuloso e, para glória apoteótica, ao chegar
à rodoviária meu tio me deu uma moeda e mandou que fosse comprar um picolé
(nunca tinha visto um), mostrou-me a carrocinha, acenou para o vendedor e disse
que eu podia ir sozinho até ele, que tivesse cuidado: que era pra pegar no
palito. Meu pai só olhou-me de soslaio.
Distraí-me enquanto descobria o que era o tal picolé, pensei ser quente,
pois a carrocinha esfumaçou quando o homem abriu e perguntou-me:
- Quer de qual?
- Qualquer um.
- De morango, quer?
- Quero.
Peguei aquele negócio vermelho e levei à boca para dar uma dentada. Pense
num susto! O bicho doeu no dente, adormeceu minha língua, chegou a correr-me
água da vista. Num supetão joguei fora o picolé, cuspi e tentei correr em fuga.
Foi uma gargalhada geral, do vendedor e dos presentes no entorno.
Chorando fui em direção ao meu pai, mas ele já estava subindo para o
ônibus, olhou-me, pareceu que lacrimejava, e disse:
- Fique com seu tio, ele vai cuidar de você.
Foi a última vez que vi meu pai.
Quando voltei com meu tio, entendi o segredo da caixa, eram minhas
coisas. Todas as imagens se encaixaram, o choro de minha mãe, o enfezamento de
Seu Agostinho, os olhares duros entre meu pai e meu tio, compreendi quase tudo
naquele instante. Então me subiu pela garganta esta cólera, mas, não virou
lágrima.