Foto: Fátima Vieira |
Ontem visitei o Memorial da América Latina onde estão em exposição os painéis Guerra e Paz de Candido Portinari, doados à ONU em 1956.
Fiquei muito emocionada com a grandeza da obra e do autor. É grandiosa, impressionante e de uma beleza que deixa a todos extasiados.
Os painéis |
A exposição está dividida em três partes: os painéis, no Salão de Atos Tiradentes; estudos do pintor para essa obra, que são pequenas obras primas na Galeria Marta Traba; e a Biblioteca, na qual há uma interface digital, com projeções e vídeos usando tecnologia de ponta, onde uma linha do tempo foi traçada, usando imagens em movimento, com a trajetória inteira do pintor, desde sua infância em Brodowski, SP.
Todos os brasileiros deveriam conhecer, pelo menos, essa que é a obra mais famosa de Portinari, para terem orgulho desse brasileiro que retratou tão bem as questões sociais e raciais do Brasil no seu trabalho.
Fátima Vieira
HISTÓRIA
… a mais importante obra de arte monumental doada à ONU.
Dag Hammarskjold, Secretário-Geral da ONU, 1957
Presentes do Governo Brasileiro para a sede da ONU, em NY, os painéis Guerra e Paz foram encomendados no final de 1952 ao pintor. Era uma superfície de 280 metros quadrados, espaço maior do que o do Juízo Final, de Miguel Ângelo, na Capela Sistina.
Detalhe do painel Guerra Foto: Fátima Vieira |
Contrariando as recomendações médicas, proibido de pintar por sintomas de intoxicação pelas tintas, Portinari aceitou o convite. E no auditório dos estúdios da TV Tupi, durante 4 anos, trabalhou com afinco na confecção de 180 estudos, esboços e maquetes para os murais. Em 5 de janeiro de 1956, Portinari entregava os painéis Guerra e Paz ao Ministro das Relações Exteriores Macedo Soares, para a doação à ONU.
Encomenda entregue. Mas ninguém havia visto ainda os painéis em sua plenitude, nem mesmo o próprio artista. Foi então que começou um movimento de opinião pública, e um grupo de artistas e intelectuais apelou ao Itamaraty para que os painéis fossem expostos no Brasil antes do embarque para os EUA, para que fosse dada uma chance ao público brasileiro de vê-los, pela primeira e derradeira vez.
Assim, Guerra e Paz foram montados lado a lado ao fundo do palco do Theatro Municipal. Muito bem iluminados, e com o teatro praticamente às escuras, ficaram impressionantes. Em fevereiro de 1956, os painéis foram solenemente inaugurados pelo Presidente da República Juscelino Kubitschek, que, na ocasião, entregou a Portinari a Medalha de Ouro de Melhor Pintor do Ano (de 1955) concedida pelo International Fine Arts Council de Nova York.
Detalhe do painel Guerra Foto: Fátima Vieira |
Grupos de estudantes, operários, moças, velhos, pessoas vestidas simplesmente, uma grande massa que se renovava continuamente, durante todo o dia e pela noite a dentro, lotou o Municipal nos poucos dias de exposição. Todos os jornais deram amplo espaço ao acontecimento. A Imprensa Popular abriu a manchete: “O povo lotou o Municipal para ver os painéis de Portinari”. E registrou em subtítulo: “‘Nunca vi uma coisa assim’, disse o porteiro que distribuía os folhetos à entrada”.
Logo depois de desmontada a exposição, os painéis foram enviados à ONU. No entanto, somente em 6 de setembro de 1957, após dois imensos caixotes contendo a obra ficarem no porão da instituição durante um ano e seis meses, Guerra e Paz foram finalmente doados à ONU em cerimônia oficial.
Devido ao envolvimento de Portinari com o Partido Comunista, Portinari não foi convidado a comparecer à cerimônia, sendo representado pelo chefe da delegação brasileira na Organização, o Embaixador Cyro de Freitas-Valle, que afirma: “Com pesar não o vejo hoje entre nós”. E acrescenta: “Desejo salientar um ponto: o Brasil está oferecendo hoje às Nações Unidas o que acredita ser o melhor que tem para dar”.
O PROJETO
A pedido do Governo Brasileiro, a ONU confiou a guarda dos painéis Guerra e Paz ao Projeto Portinari até agosto de 2013.
Entre 1952 e 1956, Candido Portinari realizou seus dois últimos e maiores murais, Guerra e Paz (14m de altura por 10m de largura, aprox.), encomendados pelo governo brasileiro para presentear a sede da ONU, em Nova York.
Detalhe do painel Guerra Foto: Fátima Vieira |
Localizados em local nobre, de acesso restrito aos delegados das Nações, no hall de entrada da Assembleia Geral, os monumentais painéis não podem ser vistos pelo público por razões de segurança, nem mesmo durante as visitas guiadas da ONU. Por esse motivo, o Projeto Portinari sempre sonhou em expor Guerra e Paz ao grande público.
Em 2007, o anúncio de uma grande reforma no edifício sede da ONU entre 2010 e 2013 proporcionou a oportunidade inédita de expor os painéis Guerra e Paz no Brasil e no exterior.
Resultado de mais de três anos de empenho e articulações do Projeto Portinari com o Governo Federal, instituições internacionais e empresas estatais e privadas, finalmente, com o apoio financeiro do BNDES, o Projeto Guerra e Paz é, hoje, uma realidade.
Em dezembro de 2010, o retorno de Guerra e Paz ao Brasil foi celebrado com a exposição dos painéis no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com entrada franca. O evento reuniu mais de 44 mil pessoas em apenas 12 dias. Em seguida, os painéis foram restaurados em ateliê aberto, no Palácio Gustavo Capanema, sede do Ministério da Cultura no Rio de Janeiro, por onde passaram mais de 6 mil visitantes em 4 meses.
Assinatura de Portinari nos painéis Foto: Fátima Vieira |
Neste momento, o Projeto Portinari planeja a exposição Guerra e Paz, de Portinari em São Paulo. Além de apresentar os painéis restaurados, a exposição reunirá cerca de 100 dos estudos preparatórios de Portinari para Guerra e Paz, estes em première mundial (nem o próprio pintor teve a oportunidade de vê-los em seu conjunto).
São Paulo será o ponto de partida para a itinerância internacional da exposição durante 2012 e 2013, articulada com o Itamaraty, que pretende levar Guerra e Paz entre outras cidades à Hiroshima e à Oslo, por ocasião da entrega do Prêmio Nobel da Paz.
Além da fundamental parceria com o BNDES, outras empresas e instituições nos dedicaram especial confiança e apoio para a concretização de todas as etapas do Projeto Guerra e Paz. Contamos com o patrocínio da BFRE, do O Boticário, do Banco do Brasil e dos Correios, além da Queiroz Galvão Exploração e Produção e da Redecard. Contamos ainda com o inestimável apoio da ONU, do Ministério da Cultura, do Itamaraty, da Funarte, do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, da PUC-Rio, da Rede Globo do InfoGlobo e da Galeria Dom Quixote.
A RESTAURAÇÃO
Desprendimento da tinta, painel Guerra |
A vinda dos painéis Guerra e Paz para restauração no Brasil ofereceu a oportunidade de apresentarmos a estudantes, estudiosos e ao publico interessado os modernos procedimentos e técnicas de restauro usados no Brasil. O trabalho de restauração possibilitou ainda a documentação científica dos painéis.
A restauração foi realizada em ateliê aberto ao público no Palácio Gustavo Capanema de fevereiro a maio de 2011, com entrada franca. As intervenções para preservação dos painéis foram realizadas por uma equipe de 18 restauradores brasileiros, sob a coordenação técnica do Prof. Edson Motta Jr. (UFRJ) e de Cláudio Valério Teixeira.
PROGRAMA EDUCATIVO
O Ateliê Aberto de Restauro dos painéis Guerra e Paz franqueou ao público o acompanhamento do processo de trabalho dos restauradores, contextualizando a vida e a obra de Candido Portinari, a história e o processo de criação dos painéis Guerra e Paz e sua instalação na sede da ONU.
Chanssis na face da figura, Paz |
Durante o percurso, o visitante teve acesso a um conjunto de documentos originais que contam a história da produção de Guerra e Paz, desde o convite feito a Portinari pelo Governo Brasileiro até a instalação dos painéis na ONU.
Um ateliê cenográfico de Portinari, ambientado com mobiliário e objetos pessoais do pintor, apresentava o processo real de criação dos painéis. A visitação foi incrementada com a instalação de um laboratório de análise científica, que ajudava o visitante a compreender melhor os métodos e técnicas do processo de restauro.
A visita guiada se encerrava no espaço educativo, onde todos eram mobilizados pela criação de uma cultura de Paz, através do conhecimento sobre a vida, a obra e o pensamento de Portinari. Neste momento também serão levantadas as questões do exercício da cidadania e da preservação do patrimônio em nosso país.
O PINTOR
Não conheço nenhuma grande Arte que não
esteja intimamente ligada ao povo.
Portinari, 1947
Candido Portinari nasceu em 30 de dezembro de 1903 no interior do Estado de São Paulo. Viveu sua infância na pequena cidade de Brodowski e, aos 15 anos, saiu de sua terra natal para o Rio de Janeiro, com papel e cores em punho para a imensa aventura de pintar uma pátria.
Aos 10 anos |
Sem curso primário completo, e à custa de muita obstinação e talento, tornou-se um dos mais famosos pintores das Américas. Com sua morte tragicamente prematura, aos 58 anos, Portinari deixou um extraordinário legado de mais de 5 mil obras murais, afres-cos e painéis, pinturas, desenhos e gravuras que re-presentam uma ampla síntese crítica de todos os as-pectos da vida brasileira de seu tempo.
Quando pensamos em Portinari, logo lembramos dos Retirantes, a temática social, o protesto obstinado contra a violência e as injustiças. Mas há um outro Portinari de singela e delicada poesia. O Portinari lírico, que traz a infância gravada em seu coração. Durante toda a sua vida, o pintor esteve às voltas com este contraponto entre o drama e a poesia, evoluindo no tempo, do regional para o universal.
Podemos ver na trajetória de Portinari a demonstração literal da frase do escritor russo Tolstoi “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia…”. Portinari cumpriu este percurso, de Brodowski à ONU. Se no início de sua trajetória Portinari retrata os meninos e meninas de Brodowski, ao final, no coral de crianças de todas as raças, que se destaca no mural Paz, ele pinta crianças universais. Se no início suas “Pietás” (mãe com filho morto ao colo) são retirantes nordestinas, no mural Guerra são mães universais.
Estou proibido de viver
Portinari, O Globo, 1954
Durante passeio pela Europa, Paris 1929 |
Durante o período de criação dos murais Guerra e Paz, Portinari foi proibido de pintar pelos médicos, na tentativa de freiar o processo de envenenamento pelas tintas que o pintor sofria. Mas Portinari não recuou ao desafio e ao trabalho maior de toda a sua vida. Guerra e Paz seria o coroamento na trajetória de vida de Portinari, que não pintava apenas por pintar.
Para a imensa tarefa, o artista teve o auxílio de Enrico Bianco e de Rosalina Leão. Segundo Bianco, não há um centímetro quadrado nos painéis que não tenha a pincelada de Portinari, que usou pincéis pequenos, para quadros de cavalete, não pincéis maiores… E em nove meses, cobriu, pincelada a pincelada, usando as tintas proibidas, dois monumentais paredões de 14m de altura e 10m de largura.
Portinari faleceu em 6 de fevereiro de 1962.
Mensagem enviada por Portinari à Conferência Cultural e Científica para a Paz Mundial em NY, em 1949 (convidado a participar da Conferência, o pintor ficou impossibilitado de comparecer porque a embaixada americana lhe negou o visto de entrada no país por razões políticas):
“A luta pela Paz é uma decisiva e urgente tarefa. É uma campanha de esclarecimento e de alerta que exige determinação e coragem. Devemos organizar a luta pela Paz, ampliar cada vez mais a nossa frente anti-guerreira, trazendo para ela todos os homens de boa vontade, sem distinção de crenças ou de raças, para assim unidos, os povos do mundo inteiro, não somente com palavras mas com ações, levar até a vitória final a grande causa da Paz, da Cultura, do Progresso e da Fraternidade entre os povos.”
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