domingo, 27 de maio de 2012

PRESENTE DE DOMINGO...

Mário de Andrade


POEMAS DA AMIGA

Mário de Andrade

A tarde se deitava nos meus olhos
E a fuga da hora me entregava abril,
Um sabor familiar de até-logo criava
Um ar, e, não sei porque, te percebi.

Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança.
Estavas longe doce amiga e só vi no perfil da cidade
O arcanjo forte do arranha-céu cor de rosa,
Mexendo asas azuis dentro da tarde.

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus amigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.


Imagem Google

sábado, 26 de maio de 2012

MARCHA DAS VADIAS VAI INVADIR A ‘PRAIA’ DE 15 CIDADES BRASILEIRAS



Prepare-se! Em nome da igualdade de gênero, contra o preconceito, elas vão ocupar as ruas de 15 cidades em diversas regiões do país neste sábado (26). A Marcha das Vadias, lançada em abril de 2011 em Toronto, no Canadá, mesmo com pouco tempo de existência, já conquistou a simpatia de muitos pela causa e irreverência. Mulheres e homens de todas as idades vêm comparecendo cada vez mais.aos protestos e passeatas que pipocam por todo o mundo.

Por Deborah Moreira*

Em São Paulo, até o fechamento desta matéria, cerca de 1.300 pessoas haviam confirmado presença na marcha organizada por diversas entidades, feministas, além de sindicatos, estudantes e segmentos como direitos humanos.

“A Marcha das Vadias não é uma organização única. É uma manifestação coletiva que foi apropriada pelos movimentos que se identificaram com as bandeiras. Não somos uma entidade única. Formamos um grupo com representantes de várias entidades do movimento feminista e de outros movimentos, como o sindical e estudantil”, explica Bruna Provazi, 25 anos, que integra a Marcha Mundial de Mulheres desde 2007.

Bruna veio para São Paulo de Juiz de Fora (MG), onde viveu uma experiência comum a muitas mulheres. “Lá organizava, e ainda organiza, um festival feminista de cultura para combater o ambiente machista de bandas de música. Eu toco guitarra numa banda e percebi que a maioria dos integrantes sempre são homens, é um ambiente machista, como muitos outros”, contou Bruna, revelando sua experiência pessoal ao Vermelho.

Bandeiras

Contra a violência doméstica, contra o preconceito e discriminação e em defesa da liberdade sexual e igualdade de gênero. Essas são algumas das bandeiras comuns que serão vistas em cartazes e nas manifestações artísticas e ouvidas nos discursos.

“No começo há um estranhamento por causa do nome (vadias). Mas, logo quando começamos a explicar pelo que marchamos, todos se solidarizam e manifestam vontade de marchar com a gente”, lembrou a militante mineira.

Em São Paulo, a concentração será partir das 13h, na Praça do Ciclista, na Avenida Paulista. De lá, descerão pela rua Augusta, depois para a Consolação, seguindo até a Praça Roosevelt, onde acontecerá um ato político.

Confira a agenda:

-Brasília, DF
Local e hora: concentração no CONIC, 13h (próximo à Rodoviária do Plano Piloto)
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-Belo Horizonte, MG
Local e hora: Concentração na Praça Rio Branco (praça da Rodoviária), a partir das 13h.
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Twitter: @slutwalkbh

-Campo Grande, MS
Local e hora: a confirmar
Veja fotos da primeira Marcha de 2012

-Criciuma, SC
Local e hora: Praça Nereu Ramos (em frente a Casa de Cultura), 10h
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- Curitiba, PR
Local e hora: Reitoria da UFPR, das 18h às 22h
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-Florianópolis, SC
Local e hora: Concentração na Catedral (centro da cidade), a partir das 10h.
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Natal, RN
Local e hora: Feira do Alecrim, 10h
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-Salvador, BA
Local e hora: Praça da Piedade, às 13h30

-São Carlos, SP
Local e hora: Praça Santa Cruz, 9h
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-São José dos Campos, SP
Local e hora: Praça Afonso Pena, 10h
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-São Paulo, SP
Local e hora: Praça do Cicllista, 13h
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-Porto Alegre, RS
Local e hora: Arcos da Redenção, 14h

-Recife, PE
Local e hora: Praça do Derby, 14h
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-Rio de Janeiro, RJ
Concentração no Posto 4 da Av. Atlântica, a partir de 13h
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-Vitória, ES
Local e hora: UFES, 14h
Evento no Facebook




MARCHA DAS VADIAS

Vá-dia de violência contra a mulher;
Vá-dia de estupro;
Vá-dia de soco, pontapé, pancada;
Vá-dia da palavra mal colocada.

Hoje é dia de não adiar:
não adiar os milênios  
de Pudor
de Medo
de Violação

Se somos iguais, me mostre a diferença:
não sacrifique seu desejo em mim!

Vá-dia, e adia o silêncio:
das mães
das filhas
das santas e das putas
Dessas nós, mulheres!

Que de corpo marcado
Trazemos a cara pintada
Pra ter a alma lavada:
Basta!

Marcha das Vadias Campinas 2011



PORQUE HOJE É SÁBADO...



SERÁ O BENEDITO!

Mário de Andrade

A primeira vez que me encontrei com Benedito, foi no dia mesmo da minha chegada na Fazenda Larga, que tirava o nome das suas enormes pastagens. O negrinho era quase só pernas, nos seus treze anos de carreiras livres pelo campo, e enquanto eu conversava com os campeiros, ficara ali, de lado, imóvel, me olhando com admiração. Achando graça nele, de repente o encarei fixamente, voltando-me para o lado em que ele se guardava do excesso de minha presença. Isso, Benedito estremeceu, ainda quis me olhar, mas não pôde agüentar a comoção. Mistura de malícia e de entusiasmo no olhar, ainda levou a mão à boca, na esperança talvez de esconder as palavras que lhe escapavam sem querer:

— O hôme da cidade, chi!...

Deu uma risada quase histérica, estalada insopitavelmente dos seus sonhos insatisfeitos, desatou a correr pelo caminho, macaco-aranha, num mexe-mexe aflito de pernas, seis, oito pernas, nem sei quantas, até desaparecer por detrás das mangueiras grossas do pomar.

***
Nos primeiros dias Benedito fugiu de mim. Só lá pelas horas da tarde, quando eu me deixava ficar na varanda da casa-grande, gozando essa tristeza sem motivo das nossas tardes paulistas, o negrinho trepava na cerca do mangueirão que defrontava o terraço, uns trinta passos além, e ficava, só pernas, me olhando sempre, decorando os meus gestos, às vezes sorrindo para mim. Uma feita, em que eu me esforçava por prender a rédea do meu cavalo numa das argolas do mangueirão com o laço tradicional, o negrinho saiu não sei de onde, me olhou nas minhas ignorâncias de praceano, e não se conteve:

— Mas será o Benedito! Não é assim, moço!

Pegou na rédea e deu o laço com uma presteza serelepe. Depois me olhou irônico e superior. Pedi para ele me ensinar o laço, fabriquei um desajeitamento muito grande, e assim principiou uma camaradagem que durou meu mês de férias.

***
Pouco aprendi com o Benedito, embora ele fosse muito sabido das coisas rurais. O que guardei mais dele foi essa curiosa exclamação, "Será o Benedito!", com que ele arrematava todas as suas surpresas diante do que eu lhe contava da cidade. Porque o negrinho não me deixava aprender com ele, ele é que aprendia comigo todas as coisas da cidade, a cidade que era a única obsessão da sua vida. Tamanho entusiasmo, tamanho ardor ele punha em devorar meus contos, que às vezes eu me surpreendia exagerando um bocado, para não dizer que mentindo. Então eu me envergonhava de mim, voltava às mais perfeitas realidades, e metia a boca na cidade, mostrava o quanto ela era ruim e devorava os homens. "Qual, Benedito, a cidade não presta, não. E depois tem a tuberculose que..."

— O que é isso?...

- É uma doença, Benedito, uma doença horrível, que vai comendo o peito da gente por dentro, a gente não pode mais respirar e morre em três tempos.

— Será o Benedito...

E ele recuava um pouco, talvez imaginando que eu fosse a própria tuberculose que o ia matar. Mas logo se esquecia da tuberculose, só alguns minutos de mutismo e melancolia, e voltava a perguntar coisas sobre os arranha-céus, os "chauffeurs" (queria ser "chauffeur"...), os cantores de rádio (queria ser cantor de rádio...), e o presidente da República (não sei se queria ser presidente da República). Em troca disso, Benedito me mostrava os dentes do seu riso extasiado, uns dentes escandalosos, grandes e perfeitos, onde as violentas nuvens de setembro se refletiam, numa brancura sem par.

Nas vésperas de minha partida, Benedito veio numa corrida e me pôs nas mãos um chumaço de papéis velhos. Eram cartões postais usados, recortes de jornais, tudo fotografias de São Paulo e do Rio, que ele colecionava. Pela sujeira e amassado em que estavam, era fácil perceber que aquelas imagens eram a única Bíblia, a exclusiva cartilha do negrinho. Então ele me pediu que o levasse comigo para a enorme cidade. Lembrei-lhe os pais, não se amolou; lembrei-lhe as brincadeiras livres da roça, não se amolou; lembrei-lhe a tuberculose, ficou muito sério. Ele que reparasse, era forte mas magrinho e a tuberculose se metia principalmente com os meninos magrinhos. Ele precisava ficar no campo, que assim a tuberculose não o mataria. Benedito pensou, pensou. Murmurou muito baixinho:

— Morrer não quero, não sinhô... Eu fico.

E seus olhos enevoados numa profunda melancolia se estenderam pelo plano aberto dos pastos, foram dizer um adeus à cidade invisível, lá longe, com seus "chauffeurs", seus cantores de rádio, e o presidente da República. Desistiu da cidade e eu parti. Uns quinze dias depois, na obrigatória carta de resposta à minha obrigatória carta de agradecimentos, o dono da fazenda me contava que Benedito tinha morrido de um coice de burro bravo que o pegara pela nuca. Não pude me conter: "Mas será o Benedito!...”.  E é o remorso comovido que me faz celebrá-lo aqui

São Paulo, 2ª. quinzena de outubro de 1939. (n°145)

Texto extraído do livro "Será o Benedito!", Editora da PUC-SP, Editora Giordano Ltda. e Agência Estado Ltda.- São Paulo, 1992, pág. 66, uma colaboração de João Antônio Bührer e seus "Arquivos Impagáveis".



quinta-feira, 24 de maio de 2012

A VALSA DAS MERETRIZES




" Os políticos e a as fraldas são semelhantes, possuem o mesmo conteúdo "
Eça de Queiroz


Sem querer desmerecer o mister de prostituta (Profissão nº 5198-05 – Classificação Brasileira de Ocupações), o cenário político paraibano muito se assemelha a uma valsa de meretrizes.Os candidatos oscilam entre as tetas do poder, como “mulheres de vida fácil”, oferecendo-se ao varão que pagar mais.

Nunca vi tanta estreiteza de caráter e falta de éticas juntas. Sou Procurador há dez anos e me lembro de um determinando parlamentar que vinha ao MPT patrocinar ferrenhas denúncias de improbidade e arbitrariedade contra um gestor público. Hoje, esta pessoa é seu mais “fiel” aliado.

Viscerais inimigos tornam-se, com num toque de mágica, amigos íntimos, permanecendo fieis até que outra conveniência os separe novamente.

Não existe oposição ética a governistas. Há, isto sim, oposição conveniente e oportunista pela não participação na fatia de cargos oferecidos pelo Poder. Ninguém pensa no bem comum do povo.

A Paraíba é um dos Estados mais atrasados do Brasil e, na atual legislatura estadual, mantém-se vassala de Pernambuco. Para piorar, o equilíbrio entre os três poderes – legislativo, judiciário e executivo – apresenta-se sensivelmente abalado com a hipertrofia anômala deste último.

No geral, as equipes dos administradores eleitos pelo povo são compostas, salvo raríssimas exceções, de uma gleba de incompetentes e despreparados, nomeados unicamente por motivos obtusos como o nepotismo, clientelismo e fisiologismo. A constituição já tem mais 20 anos, e o princípio da impessoalidade nunca foi seguido à risca.

As siglas partidárias, representando as mais diversas ideologias políticas (socialismo, trabalhismo, democracia, comunismo etc) são meros signos alegóricos. Já vi “socialistas” defenderem a terceirização (rectius: privatização) da saúde pública, numa ilógica e insana postural neoliberal. Isto tudo é explicado pela busca incessante dos agentes públicos por prestígio, poder e dinheiro, as três potestades demoníacas responsáveis pela ruína e decadência da sociedade paraibana.

Alguém defende o concurso público? Não! Servidor concursado é mais difícil de ser manipulado, eis que detentor de estabilidade; não vende seu voto em troca de um cargo. É por isso que as administrações públicas estadual e municipal estão repletas de trabalhadores temporários, oprimidos e assediados a todo instante para manterem sua fonte de sobrevivência. Tudo acontece sob às vistas do Tribunal de Contas do Estado.

Não sei como essa gente tem estômago para tudo isso: valsando de um lado a outro em busca de conluios e vantagens ilícitas. A medida que o tempo passa, dói admitir que Maquiavel poderá estar certo: terá todo homem o seu preço?

por Eduardo Varandas Araruna


Eduardo Varandas Araruna


terça-feira, 22 de maio de 2012

COMPLICABILIZANDO


RICARDO FREIRE

Não, por favor, nem tente me disponibilizar alguma coisa, que eu não quero. Não aceito nada que pessoas, empresas ou organizações me disponibilizem. É uma questão de princípios. Se você me oferecer, me der, me vender, me emprestar, talvez eu venha a topar. Até mesmo se você tornar disponível, quem sabe, eu aceite. Mas, se você insistir em disponibilizar, nada feito.

Caso você esteja contando comigo para operacionalizar algo, vou dizendo desde já: pode tirar seu cavalinho da chuva. Eu não operacionalizo nada para ninguém. Tampouco compactuo com quem operacionalize. Se você quiser, eu monto, eu realizo, eu aplico, eu ponho em operação. Se você pedir com jeitinho, eu até implemento. Mas, operacionalizar, jamais.

O quê? Você quer que eu agilize isso para você? Lamento, mas eu não sei agilizar nada. Nunca agilizei. Está lá no meu currículo: faço tudo, menos agilizar. Precisando, eu apresso, eu priorizo, eu ponho na frente, eu dou um gás. Mas agilizar - desculpe, não posso, acho que matei essa aula.

Outro dia mesmo queriam reinicializar meu computador. Só por cima do meu cadáver virtual! Prefiro comprar um computador novo a reinicializar o antigo. Até porque eu desconfio que o problema não seja assim tão grave. Em vez de reinicializar, talvez seja o caso de simplesmente reiniciar, e pronto.

Por falar nisso, é bom que você saiba que eu parei de utilizar. Assim, sem mais nem menos. Eu sei, é uma atitude um tanto quanto radical da minha parte, mas eu não utilizo mais nada. Tenho consciência de que a cada dia que passa mais e mais pessoas estão utilizando, mas eu parei. Não utilizo mais. Agora eu só uso. E recomendo. Se você soubesse como é muito mais elegante, também deixaria de utilizar e passaria a usar.

Sim, estou me associando à campanha nacional contra os verbos que acabam em "ilizar". Se nada for feito, daqui a pouco eles serão mais numerosos do que os terminados simplesmente em "ar". Todos os dias os maus tradutores de livros de marketing e administração disponibilizam mais e mais termos infelizes, que imediatamente são operacionalizados pela mídia, reinicializando palavras que já existiam e eram perfeitamente claras e eufônicas.

A doença está tão disseminada que muitos verbos honestos, com currículo de ótimos serviços prestados, estão a ponto de cair em desgraça entre pessoas de ouvidos sensíveis. Depois que você fica alérgico a disponibilizar, como você vai admitir, digamos, "viabilizar"? É triste demorar tanto tempo para a gente se dar conta de que "desincompatibilizar" sempre foi um palavrão.

Precisamos reparabilizar nessas palavras que o pessoal inventabiliza só para complicabilizar. Caso contrário, daqui a pouco nossos filhos vão pensabilizar que o certo é ficar se expressabilizando dessa maneira. Já posso até ouvir as reclamações: "Você não vai me impedibilizar de falabilizar do jeito que eu bem quilibiliser". Problema seu. Me inclua fora dessa.

E-mail para a coluna: xongas@edglobo.com.br


Imagem: Rodrigo Pereira



domingo, 20 de maio de 2012

A BABACA E O SABIDO




Tenho andado muito em São Paulo. De metrô, “de a pé”, como dizem por aqui, de ônibus e de táxi. Com metrô e ônibus não há problemas porque as rotas são as mesmas e só temos que escolher a que melhor nos servirá. Quanto aos táxis...

Eu já precisei andar de táxi umas 8 vezes nesses dias que estou aqui e tudo corria muito bem até quinta-feira passada, quando voltei de táxi de um teatro.

Fui assistir ao excelente musical estrelado por José Mayer, “Um violinista no telhado”, que está sendo apresentado no Teatro Alfa, que fica em Santo Amaro, numa rua paralela à Marginal Pinheiros. Estou hospedada no Sumaré, a 5 minutos do metrô da Vila Madalena, um lugar muito legal, apesar de bastante frio.

Daqui de onde estou hospedada até o Teatro Alfa é longe! Para ir meus amigos me levaram, mas para voltar tive que vir de táxi, já que a sessão acabou às 23h50 (são 2h e 35min de espetáculo).

Na porta do teatro há um ponto de táxi e eu peguei o que estava na vez. Os problemas começaram logo na saída, pois o taxista não programou o GPS com o meu endereço e eu não conseguia achar o encaixe do cinto de segurança, o que o ele resolveu parando para puxar o encaixe, pois me recusei a continuar a corrida sem cinto.

Na Marginal, talvez para testar meu cinto de segurança, ele chegou à velocidade de 100/120km, mas não falei nada. Como meu sotaque nordestino me entrega, ele começou a conversar e perguntou há quanto tempo eu morava em SP. Respondi que não morava e que estava a passeio, fato que ele comprovaria mesmo que eu não tivesse falado porque não conhecia os caminhos pelos quais ele estava indo.

Ele continuou a conversar e até a perguntar coisas da minha vida, como a minha idade, coisa que não nego nem escondo nunca.

Eu havia perguntado no ponto de táxi perto da casa dos meus amigos, quanto daria uma corrida do teatro até aqui e os motoristas estimaram em 50,00. E agora procurei no site onde calcula as tarifas de táxi e ele me deu um resultado de 57,87 na bandeira 2 para táxi comum, que é o do taxista em questão. Baseada nesse valor dado pelos taxista do bairro, levei exatos 87,00 para o teatro. Antes de entrar tomei um chocolate quente para passar o frio, que custou 4,00, então fiquei com 83,00.

E lá vínhamos nós pela Marginal Pinheiros e o taxímetro danado correndo. Quando o valor chegou aos 50,00 disse a ele que o dinheiro que tinha na carteira talvez não desse para pagar, mas que eu subiria para pegar o resto, no que ele concordou de pronto. Também perguntei se ele trabalhava com cartão de crédito (estava com o Mastercard na bolsa) porque aí nem precisaria esperar, eu pagaria com o cartão, mas ele disse que não e que esperaria eu ir pegar o dinheiro. E toca nós a andar!

Comecei a achar que ele estava fazendo um trajeto muito longo, o que comprovei depois de contar aos meus amigos por onde ele veio, e com isso comecei a ficar nervosa e a reclamar. Na Av. Sumaré, por onde ele não precisava ter vindo, parou para programar o GPS e eu reclamei dizendo que isso era para ele ter feito na saída do teatro, se ele não conhecia o trajeto. Ele deu a desculpa esfarrapada de que não programou para o GPS não mandar a gente para uma favela. Me poupe!

Depois de muitas voltas e de muita reclamação minha, chegamos ao prédio dos meus amigos. A corrida deu 96,50 e eu só tinha 83,00. Disse a ele que esperasse que eu ia pegar o dinheiro e nesse  momento o infeliz mostrou o canalha que é.

Ele desceu do carro com o celular na mão dizendo que ia chamar a polícia porque eu não queria pagar, que eu deveria deixar um documento e dar uma parte do dinheiro a ele. Meu documento eu não daria e jeito nenhum, pois ele poderia ir embora com a minha identidade. Quis dar 50,00 e pegar o resto, mas ele não quis, então dei 80,00 e mesmo assim ele estava impedindo minha entrada no prédio.

Quando pedi ao porteiro, via interfone, para abrir o portão, ele disse que não abrisse porque eu não queria pagar e ia chamar a polícia. Disse a ele então que chamasse e aí a gente ia ver quem estava usando de má fé. A confusão que ele fez foi tanta que a minha amiga acordou e pôs a cabeça na janela perguntando o que estava acontecendo. Respondi que o taxista estava duvidando que eu fosse pegar o resto do dinheiro. Ao ver minha amiga ele baixou a bola e saiu da frente do portão para eu entrar.

Eu tremia de raiva e de vergonha por passar por esse vexame desnecessário na porta do prédio da minha amiga, que é a síndica, depois da meia-noite, com o risco de acordar mais gente.

Peguei o dinheiro e entreguei ao canalha, não antes de dizer a ele que não sou a trambiqueira que ele imaginou e que faria uma reclamação formal contra ele. A minha vontade era dizer uns desaforos àquele cretino, mas não disse em respeito aos meus anfitriões e aos outros moradores do prédio.

Olhei a placa do carro, mas, de tão nervosa e chateada, esqueci de olhar a identificação do veículo, já que ele faz parte de uma cooperativa, fato que comprovei porque, no trajeto, ele falou pelo rádio com a central.

Entrei e contei o caso à minha amiga e depois abri o computador para reclamar. Achei o local no site da Prefeitura de SP. Preenchi o formulário, mas quando coloquei a placa deu que ela não está nos registros da Prefeitura. Ou a placa não existe como táxi ou eu anotei errado, de tão nervosa que fiquei. Fora a placa a gente coloca também o ponto de táxi e outras informações. E pode reclamar como anônimo ou dar os dados do reclamante. Na hora de fazer cliquei errado e entrou como anônimo, mas como eu tinha copiado a reclamação, abri outro formulário e coloquei meu dados todos, inclusive telefone e email.

Ontem olhei para ver se tinha alguma informação (eles dão um número de registro), mas não havia nada. Vou continuar olhando para ver no que vai dar.

O que mais me chateou nesse episódio foi o fato dele achar que eu não ia pagar, quando, desde que vi que o dinheiro que tinha na carteira não seria suficiente, eu disse que subiria para pegar o resto ou, se ele trabalhasse com cartão, pagaria logo, mostrando que não queria dar um golpe nele. Mas acho que, como ele aumentou o trajeto para ganhar mais e eu percebi, então ficou com medo de eu não pagar para compensar a sacanagem dele. Jamais faria isso. Mesmo sendo lesada, eu pagaria, como paguei, o que o taxímetro estava mostrando.

Minha cunhada diz que, todos os dias, sai um sabido e um babaca de casa e quando os dois se encontram, tadinho do babaca! Certamente eu fui a babaca de quinta-feira, mas esses “sabidos”, um dia também são babacas e aí eles se ferram. Com esse não vai ser diferente. Pena que eu nunca vou saber disso para dar risadas.

Fátima Vieira

Imagens Google


PRESENTE DE DOMINGO...

Criança pulando carniça – Detalhe do painel Paz de Portinari

NA GANGORRA DOS HOMENS

Paulo D’Auria

I
As mãos,
as mãos,
as mães.
A mãe com o filho nos braços está de costas,
a mãe com o filho nos braços é uma pietá de rosto coberto,
a mãe e o filho nos braços feito uma boneca, de pau,
a mãe e o azul do filho morto.

As mães,
as mães,
as mãos.
As mulheres choram com as mãos na cabeça
sobre os cabelos desgrenhados,
As mãos erguidas ao céu em prece
sobre os cabelos rabiscados,
as mãos cobrindo as faces
dessas desgraçadas pietás sem rosto.

A morte vem cavalgando vermelha
sobre seu cavalo rabiscado,
desgraçado,
desgrenhado
à lápis.
A morte cavalgando em seu puro sangue.

II
No balanço do tempo
as crianças alçam voo,
no diabolô do tempo
as crianças se reinventam,
no coro do tempo,
as crianças.

Na gangorra dos homens
e no balanço do tempo.
Na gangorra dos homens,
e no balanço do tempo
o mundo segue seu curso não-inevitável
e as crianças brincam
simplesmente.




sábado, 19 de maio de 2012

PORQUE HOJE É SÁBADO...



O RECITAL

Luis Fernando Verissimo

Uma boa maneira de começar um conto é imaginar uma situação rigidamente formal — digamos, um recital de quarteto de cordas — e depois começar a desfiá-la, como um pulôver velho. Então vejamos. Um recital de quarteto de cordas.

O quarteto entra no palco sob educados aplausos da seleta platéia. São três homens e uma mulher.  A mulher, que é jovem e bonita, toca viola. Veste um longo vestido preto. Os três homens estão de fraque.  Tomam os seus lugares atrás das partituras. Da esquerda para a direita: um violino, outro violino, a viola e o violoncelo. Deixa ver se não esqueci nenhum detalhe. O violoncelista tem um grande bigode ruivo. Isto pode se revelar importante mais tarde, no conto. Ou não.

Os quatro afinam seus instrumentos. Depois, silêncio. Aquela expectativa nervosa que precede o início de qualquer concerto. As últimas tossidas da platéia. O primeiro violinista consulta seus pares com um olhar discreto. Estão todos prontos, o violinista coloca o instrumento sob o queixo e posiciona seu arco. Vai começar o recital. Nisso...

Nisso, o quê? Qual a coisa mais insólita que pode acontecer num recital de um quarteto de cordas? Passar uma manada de zebus pelo palco, por trás deles? Não. Uma manada de zebus passa, parte da platéia pula das suas poltronas e procura as saídas em pânico, outra parte fica paralisada e perplexa, mas depois tudo volta ao normal. O quarteto, que manteve-se firme em seu lugar até o último zebu — são profissionais e, mesmo, aquilo não pode estar acontecendo — começa a tocar. Nenhuma explicação é pedida ou oferecida. Segue o Mozart.

Não. É preciso instalar-se no acontecimento, como a semente da confusão, uma pequena incongruência.  Algo que crie apenas um mal-estar, de início e chegue lentamente, em etapas sucessivas, ao caos. Um morcego que posa na cabeça do segundo violinista durante um pizzicato. Não. Melhor ainda. Entra no palco um homem carregando uma tuba.

Há um murmúrio na platéia. O que é aquilo? O homem entra, com sua tuba, dos bastidores. Posta-se ao lado do violoncelista. O primeiro violinista, retesado como um mergulhador que subitamente descobriu que não tem água na piscina, olha para a tuba entre fascinado e horrorizado. O que é aquilo? Depois de alguns instantes em que a tensão no ar é como a corda de um violino esticada ao máximo, o primeiro violinista fala:

— Por favor...

— O quê? — diz o homem da tuba, já na defensiva. — Vai dizer que eu não posso ficar aqui?

— O que o senhor quer?

— Quero tocar, ora. Podem começar que eu acompanho.

Alguns risos na platéia. Ruídos de impaciência. Ninguém nota que o violoncelista olhou para trás e quando deu com o tocador de tuba virou o rosto em seguida, como se quisesse se esconder. O primeiro violinista continua:

— Retire-se, por favor.

— Por quê? Quero tocar também.

O primeiro violinista olha nervosamente para a platéia. Nunca em toda a sua carreira como líder do quarteto teve que enfrentar algo parecido. Uma vez um mosquito entrou na sua narina durante uma passagem de Vivaldi.   Mas nunca uma tuba.

— Por favor. Isto é um recital para quarteto de cordas. Vamos tocar Mozart.  Não tem nenhuma parte para a tuba.

— Eu improviso alguma coisa. Vocês começam e eu faço o um-pá-pá.

Mais risos na platéia. Expressões de escândalo. De onde surgiu aquele homem com uma tuba? Ele nem está de fraque. Segundo algumas versões veste uma camisa do Vasco. Usa chinelos de dedo. A violista sente-se mal.   O violinista ameaça chamar alguém dos bastidores para retirar o tocador de tuba a força. Mas ele aproxima o bocal do seu instrumento dos lábios e ameaça:

— Se alguém se aproximar de mim eu toco pof!

A perspectiva de se ouvir um pof naquele recinto paralisa a todos.

— Está bem — diz o primeiro violinista. — Vamos conversar.  Você, obviamente, entrou no lugar errado.   Isto é um recital de cordas. Estamos nos preparando para tocar Mozart. Mozart não tem um-pá-pá.

— Mozart não sabe o que está perdendo — diz o tocador de tuba, rindo para a platéia e tentando conquistar a sua simpatia.

Não consegue. O ambiente é hostil. O tocador de tuba muda de tom. Torna-se ameaçador:

—  Está bem, seus elitistas. Acabou. Onde é que vocês pensam que estão, no século XVIII? Já houve 17 revoluções populares depois de Mozart. Vou confiscar estas partituras em nome do povo. Vocês todos serão interrogados. Um a um, pá-pá.

Torna-se suplicante:

— Por favor, só o que eu quero é tocar um pouco também. Eu sou humilde. Não pude estudar instrumento de cordas. Eu mesmo fiz esta tuba, de um Volkswagen velho. Deixa...

Num tom sedutor, para a violista:

— Eu represento os seus sonhos secretos. Sou um produto da sua imaginação lúbrica, confessa. Durante o Mozart, neste quarteto anti-séptico, é em mim que você pensa. Na minha barriga e na minha tuba fálica. Você quer ser violada por mim num alegro assai, confessa...

Finalmente, desafiador, para o violoncelista:

— Esse bigode ruivo. Estou reconhecendo. É o mesmo bigode que eu usava em 1968. Devolve!

O tocador de tuba e o violoncelista atracam-se. Os outros membros do quarteto entram na briga. A platéia agora grita e pula. É o caos! Simbolizando, talvez, a falência final de todo o sistema de valores que teve início com o iluminismo europeu ou o triunfo do instinto sobre a razão ou ainda, uma pane mental do autor. Sobre o palco, um dos resultados da briga é que agora quem está com o bigode ruivo é a violista. Vendo-a assim, o tocador de tuba pára de morder a perna do segundo violinista, abre os braços e grita: "Mamãe!"

Nisso, entra no palco uma manada de zebus.

Crônica extraída  do livro "O Analista de Bagé", L & PM Editores Ltda - Porto Alegre, 1981, pág. 58.


Imagem: Verissimo por Baptistão