sábado, 19 de fevereiro de 2011

PORQUE HOJE É SÁBADO...




AS IRMÃS PASSARINHO

Texto de Joca Souza Leão

Esta história já foi contada por dois romancistas (Cícero Belmar e Homero Fonseca). Aqui, o caso eu conto como o caso foi, contado por Jorge Martins Jr. e Zé Cláudio (que o ouviu de Abel Accioly, o autor da idéia e protagonista da história, como se verá a seguir). Pra vocês, sobretudo os mais jovens, entenderem direitinho, vou, antes de tudo, mencionar época, cenários e personagens como fazem os dramaturgos.

Época: agosto de 1958. Cenários: Recife (à época uma cidade inteligente, bonita e amena, à qual Camus se referiu como a Florença dos Trópicos); O Gráfico Amador, gráfica artesanal e experimental, fundada por jovens artistas e intelectuais, instalada num sobrado da Rua Amélia, onde hoje tem um posto de gasolina; Pensão de Dona Bombom, na zona da Rua do Rangel, esquina com o Beco do Mijo (oficialmente, Beco do Marroquim). Personagens: Roberto Rossellini, 52 anos, italiano, diretor de cinema, um dos criadores do neorrealismo italiano (Roma, cidade aberta, 1946); Aloísio Magalhães, 31 anos, pernambucano, artista plástico e designer gráfico, seria, poucos anos depois, o mais importante e famoso designer gráfico do Brasil; Abel Accioly, 26 anos, alagoano, arquiteto, um dos fundadores do Gráfico, mais adiante, trabalhou com Oscar Niemeyer na construção de Brasília; As Irmãs Passarinho, entre 18 e 20 anos, prostitutas da pensão de Dona Bombom, ganharam o apelido do pessoal d’ O Gráfico Amador porque viviam rindo e falavam cochichando, como corruchio de passarinho; Dona Bombom, dona de pensão e cafetina.

Roberto Rossellini
 Rossellini lera A Geografia da Fome, de Josué de Castro. Ficou impressionado. E bateu no Recife (pra conhecer Josué e negociar os direitos autorais do livro que pretendia filmar).  Além de diretor famoso, Rossellini era um sujeito erudito e de família romana abastada. Conquistador inveterado e bem sucedido. Entre muitos e rumorosos casos, tinha traçado Anna Magnani (Belíssima, de Luchino Visconti, 1951) e até o ano anterior estivera casado com ninguém menos do que Ingrid Bergman (de 1934 a 1982, 50 filmes, 1 Oscar e 6 indicações). O Recife se agitou com a presença ilustre. E Aloísio Magalhães foi escalado para recebê-lo, porque trabalhava (bem, “trabalhava” é força de expressão; ele não pisava lá) na DDC – Diretoria de Documentação e Cultura, e falava italiano.

Anna Magnani
Aloísio foi encontrar com Rossellini no hotel. Pensou que o cineasta, porque neorrealista e socialista, queria conhecer o povo, a pesca de caranguejo no mangue (da qual falara Josué de Castro) e a cultura popular. Ledo engano. “Quero conhecer moças da sociedade”, disse-lhe o italiano.

Preocupado com a encomenda impossível, uma vez que as moças da sociedade recifense eram todas recatadas donzelas, Aloísio foi pedir ajuda ao pessoal d’ O Gráfico Amador. E Abel Accioly deu a solução: as Irmãs Passarinho. “É só Aloísio dizer a Rossellini que as duas são da sociedade”. Aprovada a sugestão, Abel foi incumbido da missão. Na mesma hora, pegou um carro de aluguer (o táxi da época, sem taxímetro), foi à pensão de Dona Bombom e acertou tudo com ela, o michê das meninas e um jantar caprichado.

Ingrid Bergman
 Na noite seguinte, a caminho da pensão, Aloísio foi logo dizendo a Rossellini que as moças eram de família, sobrinhas de “Madame” Bombom. Rossellini cumprimentou Dona Bombom e as meninas com a devida e merecida fidalguia. Alguns uísques mais tarde, a língua não era mais empecilho, pois linguagem de homem pra mulher é a mesma em toda parte; fala-se, sobretudo, com os olhos (pidões) e as mãos (buliçosas).

O ex de Anna Magnani e Ingrid Bergman rendeu-se aos encantos da Passarinho mais jovem e mais bonita. E lhe fez uma declaração de amor solene, no melhor (ou pior) estilo hollywoodiano, seguida da promessa: “Ti voglio portare in Italia”.

Sem entender nada do que ouvira, a Passarinho foi se aninhar nos braços de Aloísio. “Pelo amor de Deus, me livra desse careca.”

Assim, a Passarinho continuou brilhando na pensão de Dona Bombom. E a Cinecittà perdeu uma estrela.


Joca Souza Leão
Joca Souza Leão é contemporâneo dessa história. Apesar de menino à época, conheceu os personagens (menos, infelizmente, Rossellini e as Irmãs Passarinho). E, adolescente, visitou os cenários citados, inclusive a Pensão de Dona Bombom.

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