TORÓ
Antonio Prata
A descarga elétrica é um chicote de 27.700 graus --
quatro vezes a temperatura na superfície do sol. O ar em torno desloca-se
causando o estrondo, que viaja por entre os prédios a 340 metros por segundo. O
homem por trás dos óculos e do bigode volta os olhos para cima. A nuvem preta
começa a seiscentos metros de suas pupilas e só termina catorze quilômetros
depois, mas de onde ele está tudo o que vê é o céu tão preto que é como se a
Terra tivesse sido engolida por um cachorro. As três moças de salto-alto e crachá
dão uns gritinhos, excitadas com o próprio susto. O velho da banca guarda o
display da mulher pelada. Os dois frentistas correm para estacionar os carros
recém-lavados sob a parte coberta do posto. O vendedor de abacaxis recolhe as
fatias dispostas sobre a barraquinha e as põe no isopor envolto por fita
marrom. No ponto de ônibus coberto há uma discreta migração da periferia para o
centro. Os estudantes de uniforme e i-pod passam correndo e gritando pela
calçada – mas talvez corressem e gritassem do mesmo modo sem trovão ou com
chuva de canivetes. O vira-lata solta o osso, fareja o ar espesso com pompa de
especialista e sai trotando. O homem por trás dos óculos e do bigode
atormenta-se com a lembrança de uma janela longe dali: fechou? Não fechou? Agora
é tarde, pois a primeira gota cai sobre o teto do posto, a segunda em cima do
ponto de ônibus, a terceira na testa de uma das moças, a quarta estatela-se no
asfalto e a chuva começa como no pior pesadelo de Asterix: o céu desabando
sobre nossas cabeças. As moças correm a toda velocidade que os saltos permitem.
O homem por trás dos óculos e do bigode, convencido de que não fechou a janela,
arrasta seu arrependimento para debaixo do ponto, onde umas quinze pessoas se
acotovelam -- embalde, pois a água vem de tudo quanto é canto: de cima pra
baixo, de baixo para cima, de um lado pro outro; jorra de dentro dos bueiros
entupidos, desce em cachoeiras pelas calhas; sacos de lixo e garrafas pet
competem no rafting do meio fio. Em cinco minutos não haverá mais ninguém sob o
ponto. Em quinze, o vendedor de abacaxis, com água pelo joelho, abandonará o
isopor. Em vinte, os frentistas desistirão da trincheira de panos e pneus, a
água já entrando pelos escapamentos. Em vinte e nove minutos a chuva haverá
terminado. As moças de crachá se secarão com os guardanapos de uma padaria e o
vira-lata tremerá dentro de um fogão abandonado no terreno baldio. Em duas
horas o homem ajeitará os óculos e torcerá a ponta do bigode ao contemplar sua
sala. O toró será a principal notícia do Jornal Nacional, mas quem mora por
aqui prescindirá das estatísticas, bastará olhar pela janela para se dar conta
do estrago: é como se a cidade tivesse sido roída por um cachorro.
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