Os pregões que me
lembro do Recife "matuto".
Paulo Lisker, de Israel
Sobre o famoso
"cachorro quente" (não este da salsicha, porem aquele que é
característico do Recife), vale à pena abrir um parêntesis.
Devemos deixar as
coisas em "pratos limpos" apesar deste produto nunca ter visto um
prato na vida, ainda mais prato limpo.
Ele era saboreado com
as mãos, uma delas segurava o "cachorro" e a outra servia de babador
para evitar manchar a camisa com o molho vermelho gostoso pra chuchu que
escorria do pãozinho com o recheio da mistura que compunha este alimento de rua.
“O VENDEDOR DO CACHORRO QUENTE”
Antes de tudo seria de bom proveito esclarecer que
cachorro nenhum está envolvido nesta comida popular de rua.
De onde vem este nome sinceramente não sei,
possivelmente algum "gozador" sarcástico numa brincadeira de mau
gosto assim a batizou. O pior de tudo foi que o nome pegou em todos os países
onde existe esta comidinha rápida nas ruas da cidade.
Este vendedor também passava na nossa rua em
direção a algum lugar onde teria condições mais seguras para colocar sua
carrocinha, o fogareiro a cesta com os pãezinhos, a panela com a clássica
"gororoba" (uma comida com componentes não bem identificados), que exalava
um cheiro excelente e sabor inigualável (ver ilustração
"infantilizada" no cabeçario do texto).
"Chef" (cozinheiro mor) de restaurante
nenhum, mesmo os de maior luxo e prestigio nunca conseguiram imitá-lo.
O aroma desta "gororoba" esquentando na
panela (na realidade um caldeirãozinho mixuruca) era de endoidar a qualquer
mortal.
De preferência instalava sua carrocinha numa praça
ou diante de um colégio, estádio de futebol no dia do jogo ou nas grandes
festas populares recifenses, pois ali encontrava- se a sua maior freguesia.
Entre outros, me lembro do Americano Batista que
ficava na Praça do Peixe Boi ou do Ginásio Pernambucano, na calçada oposta
daquela junto ao Rio Capibaribe ou mesmo no Pátio da Santa Cruz onde moravam
muitos clientes para seu "manjar celestial".
Dizem os "gozadores" (sarcásticos ou
cínicos) que quando chegava o homem do "cachorro quente" no Pátio nos
dias de festa, os sinos da igreja, dobravam anunciando o evento! Sei lá se é
mesmo verdade ou outra gozação? Fábula urbana, será?
Era muito comum ver também o dito cujo defronte da
Faculdade de Direito no Parque 13 de Maio.
As praças em geral eram preferidas para vender com
calma o seu "inigualável cachorro quente".
Dizem que quando ele cozinhava a
"Gororoba" para encher os pãezinhos, as aulas dos colégios ou das
Faculdades eram interrompidas e o pessoal saía feito doido (loucos, na fala do
povo) para comprar "cachorro quente" (este do Recife, não o clássico
"hot dog" ianque com uma salsicha vienense enfiada no cu do pão, com
mostarda, ketchup ou maionese para melhorar o gosto).
A "gororoba" cozinhada que ele colocava
no meio do pãozinho, era na realidade um picadinho cozinhado com diversos tipos
de carnes de segunda em geral de porco. Ademais estava presente o salsichão com
muita banha, chouriço, condimentos diversos, muito colorau, cominho, pimenta do
reino, toucinho cebolinha e pimentão verde bem picadinho, coentro e aquele
"toque mágico" que dava a esta "gororoba" um gosto e cheiro
único entre todas as comidas de rua.
Como não se lembrar desses 'fast food' ambulantes,
posicionados estrategicamente nas entradas dos estádios de futebol do
"Leão" da ilha do Retiro (Sport), do "Timbu Coroado"
(Náutico) ou do Alçapão do Arruda, da "Cobra Coral" (Santa Cruz).
Quem não se lembra dessas barraquinhas vendendo
"cachorro-quente" nas entradas dos clubes sociais nas festas de
carnavais do Club Internacional, Clube Português ou na "Manhã de Sol do
Sport, alem daquelas que estavam sempre lotadas de fregueses nas festas do
Pátio de Santa Cruz, na Festa da Mocidade, no parque 13 de maio.
Agora imaginem um desarranjo intestinal ou coisa
que o valha nestas grandes concentrações publicas.
Seria algo parecido a um "estouro da
boiada".
Uma multidão aflita correndo para o mato para se
livrar do "veneno gostoso" ingerido um par de horas atrás e cujo
resultado sem dúvida nenhuma poderia entupir o Recife de merda que nem os dois
rios juntos (Beberibe e Capibaribe) poderiam limpar a cidade da bosta acumulada.
No dia seguinte estaria nas manchetes dos jornais
do Recife:
"Uma pequena catástrofe causada pela iguaria
conhecida como "cachorro quente", fede em todo canto, desta vez favor
não culpar o governo".
Imaginem se isso acontece mesmo. Fim da picada.
Falando a verdade aqui entre nós, acho que nunca
comi cachorro quente. Parece mentira, porem na minha vida de menino no Recife
só conhecia o cheiro desta iguaria.
Se comi foi escondido e com um medo "danado
que me pelava".
Nessas condições não se pode saborear comida
nenhuma.
Donde esta atitude emerge?
Aqui entra o aspecto gastronômico judaico da coisa.
O judaísmo na realidade é uma filosofia de vida
depois de ser religião.
Todo e qualquer aspecto cósmico tem seu
relacionamento com esta filosofia de vida e nada fica fora do seu alcance.
Então não teria também o que dizer sobre "cachorro
quente"? Impossível!
Não foi à toa que Einstein fez seu
"doutorado" na "teoria da relatividade. Assim é esta filosofia
judaica, se relaciona com tudo e para ela, tudo é relativo. Pronto,
"Relatividade".
Para os judeus daquela época no Recife, tudo estava
em contra o "cachorro quente" como comida, com Einstein ou sem ele.
Começa pelo ingrediente a carne de porco, proibida
pela religião judaica como comida humana.
Depois, a falta total de higiene na sua
preparação, conservação dos produtos e dos restos que provavelmente seriam
requentados no dia seguinte. A venda a céu aberto, a poeira e o pior ainda é
com a fauna e flora de micróbios, bactéria e outros "bichos do mato"
que naquela gororoba poderiam se desenvolver e causar problemas no aparelho
digestivo e quem sabe até a morte por envenenamento. Vige, sai pra lá.
Então nestas condições não precisavam muito mais
para que as nossas mães proibissem terminantemente de comer esta
"porcaria" feita na rua.
Diziam em iídiche (linguagem que só eles
entendem): "Got zol uphitn essen der drekisher cachore quente vuz goim
machn in der gass mit shmutzike hent und ver veiss vuz zei guiben arain in
top" (Deus nos livre de comer esta comida de merda, feita na rua e só o
diabo sabe o que eles botam dentro daquela panela).
Triste, mas esta foi a realidade para nós a
garotada judaica do Bairro da Boa Vista.
Seu Gláucio sabia desta proibição e quando passava
com a sua carrocinha nas ruas de concentração de casas judaicas corria depressa
feito um "foguete do ar" nas épocas de São João e ia se instalar na
praça mais próxima. Quanto mais longe dos judeus, melhor!
Um dia disse ele a dona Santinha que fazia tapioca
e milho assado no seu fogareiro a carvão na esquina da Travessa do Veras, que
daria de graça a todo menino "galego judeu" (assim muitos cristãos,
pejorativamente nos denominavam), que tivesse a coragem de comer um
"cachorro quente", ali na praça na frente de todo mundo.
Parece que só dois meninos (Julio magro e Kerzman)
tiveram a coragem de comer abertamente, deixando o resto da nossa
"tropa" com água na boca, babando e morrendo de inveja e vontade.
O problema foi que a noticia chegou a casa deles,
pois sempre tem um delator em qualquer grupo. Um menino (parece que foi
Rubinho) contou a sua mãe o que se passou na praça e ela por sua vez logo
transmitiu a noticia a quem lhe compete. Foi um reboliço na comunidade.
"Quem já viu uma coisa dessas, comer cachorro
quente na rua, ainda mais na praça, todo mundo vendo, que vergonha e descuido
com a saúde. Um mau exemplo". Comentavam cochichando as senhoras nossas
mães e tias.
Aos dois garotos "rebeldes" foi aplicado
o tal castigo que durante um mês não iriam ao cinema Politeama ver o seriado de
Flash Gordon nas quintas feira.
Isto é um dilema pesado para um menino,
"cachorro quente ou Flash Gordon". Vê lá hein, fogo na roupa.
Hoje seria necessário um psicoterapeuta para
solucionar o problema, mas naquele tempo quem pensava assim? Ninguém!
O castigo era o melhor remédio para todos os males
da juventude desgarrada.
Assim nós meninos judeus nos criamos no Recife.
Não digo que nossas mães estivessem erradas quando
foram contra o "cachorro quente" como comida pra gente, talvez
pudesse ser boa pra cachorros e olhe lá, diziam elas.
Desta forma nos privaram de um "fast
food" que não sei se com este gosto e cheiro encontraríamos outra
"comida de rua" igual pelo mundo afora.
Qual não foi a minha surpresa ao ler ultimamente
relatórios de Secretaria da Saúde de São Paulo que provavam por A+B que esta
comida estava em quase 90% dos casos investigados com índices fora das normas
de tudo que é nocivo e proibido para a alimentação humana.
Vejam lá, as nossas mães meio século antes sabiam
disto sem laboratórios sem instrução farmacêutica, sem mestrado ou doutorado,
que aquela gororoba não era comida pra gente e não se deixavam levar como nós
pelo cheiro que exalava aquele caldeirãozinho com uma comida de composição não
muito bem identificada.
Para cachorros "vira lata" talvez, e
isso por que naquele "tempo matuto", ainda não havia o "SOS
ANIMAIS" ou semelhantes.
Isto posto, seria de bom proveito relatar em tempo
útil, que apesar de tudo isto, não nos foi dado a conhecer de algum surto de
envenenamentos ou caganeiras violentas que tenha levado a entupir os hospitais
do Recife ou trabalho adicional aos coveiros do cemitério de Santo Amaro, ainda
bem.
Porem nada disso convencia as nossas mães de abrir
mão desta proibição e que de uma forma voluntária cumpríamos ao pé da letra.
Passaram-se anos até que nos libertamos desta
proibição e deixamos de ser "bestas" e começamos a comer deste
"manjar dos deuses" por nós cobiçado durante décadas.
Agora posso afirmar com categoria que ele era
mesmo muito cheiroso e gostosissimo de se comer no lanche do dia.
E já que estamos falando nisso, quando acontecia
que um colega ou outro reclamavam duma caganeira brava ou dor de barriga com
vômitos, a gente brincava com o sofrimento deles e dizíamos: Comeste
"cachorro quente", não foi? Queres um carro de aluguel (taxi, naquele
tempo) para o Pronto Socorro, ou já chamamos de uma vez a ambulância com um
padre para a última unção?
A resposta já não ouvíamos, pois o dito cujo saía
"aloprado" (às pressas, as carreiras, sem ver ninguém pela frente) em
busca de um cágador (vaso sanitário) no bar mas próximo ou atrás de uma moita
no jardim.
Eu mesmo não posso testemunhar, mas amigos meus
dizem que a "peidaria" se ouvia até Jaboatão. Os miúdos nos casebres
corriam e se agarravam as saias da mamãe e diziam: "Mãe ta trubuando, já,
já vai chuber mãe, escancaro as janeias?
A noite chegava e no Recife ela chegava cedo para
o bem geral dos namorados e amantes do "cachorro quente" a estilo
recifense.
P.S.
O "cachorro quente" também era conhecido
como:
- "Gordo e quente",
- "Comeu morreu".