Eduardo d´Albergaria
Há pelo menos 3 décadas, o
fundamentalismo religioso vem ganhando espaço no Brasil de forma intensa e
silenciosa. Conquistando lugares no parlamento, em cargos executivos, canais de
televisão, os fundamentalistas transformaram suas empresas em verdadeiros impérios.
Atuam, sobretudo, nas periferias
urbanas, praticamente abandonadas pela Igreja Católica, que até então promovia,
nestas áreas, a Teologia da Libertação – isolada e perseguida pela Cúria
Romana, que discordava de sua “opção pelos pobres” e pelo seu engajamento nas
lutas por direitos.
Os fundamentalistas encontraram
terreno fértil para sua pregação: legiões de “sobrantes”, acossados pelo
desemprego, pela invisibilidade, pelo terror da violência urbana e policial,
ávidos por discursos messiânicos e salvacionistas. No meio da barbárie e
na ausência de projetos coletivos, só mesmo a fé se mostra como caminho de
saída do desespero.
Durante a ascensão do
fundamentalismo religioso, uma marca sempre esteve presente nos discursos e
pregações: a escolha de um inimigo a ser combatido. A velha estratégia de se
criar um inimigo fora do grupo, para dar sentido a sua própria existência: uma
“batalha espiritual” que divide o mundo entre o bem e o mal.
As primeiras vítimas dos
discursos de ódio do fundamentalismo religioso foram as religiões de matriz
africana, depreciadas como “rituais macabros”, “manifestações demoníacas”.
O(A)s seguidore(a)s do Candomblé e da Umbanda não contaram com a solidariedade
da sociedade brasileira. Sozinho(a)s tiveram poucas condições para resistir ao
verdadeiro linchamento público a que foram submetido(a)s. Desorganizad@s
politicamente, minoritári@s na sociedade e subalternizad@s por um preconceito
que, de tão avassalador , sequer se reconhece sua existência: o racismo.
Essa fragilidade das religiões
afro tem origem histórica. Vítimas de uma abolição tutelada, os
praticantes do candomblé e da umbanda tiveram, durante muito tempo, sua
religiosidade considerada crime e só conseguiam manter abertos seus terreiros
caso se submetessem à proteção de um coronel que trocasse liberdade
religiosa por votos.
Curiosamente, os mesmos
fundamentalistas que os atacavam (e atacam) incorporam rituais em suas
liturgias nos mesmos padrões das religiões de matriz africana. O que levou
Vagner Gonçalves da Silva, professor de antropologia da USP, a afirmar:
”Combatem-se essas religiões [afro] para monopolizar seus principais bens no
mercado religioso, as mediações mágicas e a experiência do transe religioso,
transformando-os em valor interno do sistema neopentecostal.”
Nos últimos anos, os
fundamentalistas religiosos resolveram intensificar sua campanha contra outro
“inimigo” : os sexodivers@s – gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e todas as pessoas que
vivem relações não procriativas (assim, também são rechaçados, em menor
intensidade, os heterossexuais que realizam sexo anal e, em alguns casos, até o
oral).
Utilizando-se de uma leitura
biblica datada, os fundamentalistas controem um moralismo seletivo – não
incorporam todas as proibições bíblicas: como, por exemplo, a de cortar o
cabelo e a de comer frutos do mar …
Não à toa, os fundamentalistas
escolheram este momento para intensificar seus ataques à comunidade
sexodiversa: a governabilidade conservadora dos governos Lula/Dilma – que
unificou, na mesma base de apoio, parlamentares “progressistas” e parlamentares
fundamentalistas – fez com que muitos dos tradicionais aliados da diversidade
sexual – parlamentares do PT, PC do B, PSB – se omitissem na disputa contra o
fundamentalismo religioso, agora seu aliado na sustentação de governo.
Resultado: deputados-pastores transformaram o plenário do Congresso e programas
de TV em púlpitos de sua pregação de ódio e encontraram abandonado o cenário de
disputa de valores. Some-se a isso que a resistência não tem vindo de fora do
parlamento: o movimento LGBT hegemônico é hoje composto por ONGs que se
encontram totalmente tragadas pela dependência ao Estado e reféns do
Governismo.
Enquanto isso, a comunidade
sexodiversa está totalmente domesticada pelo mercado Pink. A maior vitória do
neoliberalismo sobre a comunidade sexodiversa foi consolidar a ideia de que
“chique é consumir”, que se engajar numa causa social e refletir sobre o mundo
são coisas “cafonas” ou “pagar mico”.
Na esteira do medo e da culpa, os
fundamentalistas tentam abrir um novo e lucrativo mercado: o da cura pela
“Psicologia Cristã”. Como as normas do Conselho Nacional de Psicologia não
reconhecem esta “reorientação de desejo”, os fundamentalistas tentam agora, por
meio de sua bancada no Congresso Nacional, fazer uma intervenção no
Conselho de Psicologia para mudar as normas da profissão.
Nessa sucessão de “batalhas
espirituais”, os fundamentalistas também miraram os povos indígenas.
Ressuscitando a velha retórica “missionária” de um povo a ser salvo pela
“palavra cristã”, construíram relações bastante complicadas com os povos
indígenas. Chegaram até mesmo a propor, no Congresso Nacional, um projeto que
estabelece a visão de que os povos indígenas são infanticidas (até postaram no
youtube um filme falsamente documental). Não por acaso, simultaneamente,
abriram um vasto mercado de captação de recursos financeiros explorando adoções
de crianças indígenas e o desconhecimento por estrangeiros da realidade
dos nossos mais de 220 povos nativos.
Também os usuários de substâncias
psicoativas foram alvo do proselitismo dos fundamentalistas. Na esteira
da falência da “guerra às drogas” e na ausência de uma política de educação e
saúde mental que construa a autonomia dos sujeitos frente a estas substâncias,
os fundamentalistas multiplicaram outro mercado lucrativo: o da cura pela
conversão. Em todo o país, “comunidades terapêuticas” recebem recursos públicos
para sustentarem seu proselitismo religioso junto aos dependentes químicos.
Mas por que os fundamentalistas
escolheram as religiões afro, @s sexodivers@s e os povos indígenas como seus
inimigos? Por que não escolheram a religião católica, ainda majoritária no país
e com a qual eles disputam espaço?
Uma marca dos fundamentalistas é
a covardia: eles só enfrentam inimigos muito mais frágeis que eles. Do total da
população brasileira, 1,5% é de seguidores das religiões afro, 5 a 10% se
declaram homossexuais de %, e menos de 900 mil brasileir@s se declaram
indígenas. Além de minoritários, esses grupos, têm sido historicamente
estigmatizados e inferiorizados.
Certamente, tão cedo, não veremos
uma Santa ser chutada novamente por um pastor fundamentalista, mas terreiros
seguem sendo violados Brasil a fora sem que isso cause grandes comoções.
O caminho da ascensão
fundamentalista vem sendo trilhado sem qualquer resistência: exploração da fé
de um povo dilacerado; constituição de um moderno curral eleitoral –
transformando Cristo em Cabo Eleitoral –; influência crescente no Parlamento e
nos executivos; poder crescente no oligopólio brasileiro de informação; comunidades
terapêuticas, empresas de shows, editoras, isenção de impostos…
Uma trajetória que dilacera,
aos poucos, nosso nunca integralmente conquistado Estado Laico: leis que, de
forma crescente, estabelecem os valores dos fundamentalistas como obrigatórios
para o restante da sociedade, proselitismo religioso nas escolas públicas,
transferência de dinheiro público para subsidiar comunidades terapêuticas,
dinheiro público para marchas para “Jesus”, dinheiro público para parques gospel…
E a sociedade brasileira,
passiva, assiste à ascensão do fundamentalismo.
Até que os fundamentalistas
resolveram dar um passo “maior que suas pernas”: ter seu quadro político mais
extremista como presidente da Comissão de Direitos Humanos.
Marco Feliciano é uma caricatura pesada
demais para a sociedade brasileira. Além dos “tradicionais” ataques aos
sexodivers@s, candomblecistas, umbandistas – que ele chegou até a pregar pelos
“sepultamentos” –, o deputado-pastor vai além: ataca todos(as) os(as)
negros(as) – classificando-os(as) como “amaldiçoados(as)” e resgatando teologia
de tempos de apartheid – e as mulheres. que, e segundo ele, deveriam ser subalternizadas pelos
homens.
O sectarismo de Feliciano alcança
até mesmo os seguidores do catolicismo, que ele chamou de “religião morta e
fajuta” e responsabilizou os católicos carismáticos pelo “avivamentos de
satanás”. O deputado-pastor ainda vai mais longe: na mercantilização da
fé, promete milagres em troca de senhas de cartões de crédito e vende carnê da
casa própria em plena sessão de transe espiritual. Faz uso de seu mandato
público para fins privados: contrata pastores, produtores de vídeo e advogados
para suas empresas. Demonstra total incapacidade para lidar com o debate
democrático, já que, segundo ele, seus adversários seriam Satanás.
Feliciano é uma figura tão
indefensável que seus pares (incluída a revista Veja), para protegê-lo,
precisam construir as seguintes estratégias tangenciais, entre outras.
1 – Trasformam o debate em
uma briga pessoal entre Jean Wyllys e Feliciano. Tod@s @s deputad@s
historicamente comprometidos com os Direitos Humanos são contrários a que um
homofóbico racista esteja à frente da Comissão de Direitos Humanos. Por que só
personificar em Jean Wyllys? Novamente, a costumeira covardia dos fundamentalistas:
eles sabem que ainda há muita rejeição na sociedade ao fato de um homossexual
ocupar um cargo público.
2 – Afirmam que é uma perseguição
aos cristãos. Não é verdade: é crescente o número de cristãos que dizem não a
Marco Feliciano. Mais de 150 pastores e lideranças evangélicas assinaram um
manifesto em que solicitam a substituição da presidência da Comissão de
Direitos Humanos. Esse pedido também foi feito pela Comissão Justiça e Paz da
Cnbb e pelo Conselho de Igrejas Cristãs – que congrega a Igreja Católica,
Luterana, Presbiteriana, Metodista e Anglicana.
3 – Tentam deslegitimar os
movimentos contra Feliciano dizendo que seria mais importante lutar contra
Renan e os mensaleiros. Ora, em quem os senadores fundamentalistas votaram para ocupar a
presidência do Senado? E, entre os mensaleiros, não estava um dos parlamentares fundamentalistas, Bispo Rodrigues?
Portanto, não há sentido em se relativizar uma luta fundamental, ainda mais
quando isso é proposto por alguém que não constrói luta cidadã alguma…
Temos muito a “agradecer” a Marco
Feliciano por provocar o surgimento de um movimento amplo e plural em defesa do
Estado Laico. A sociedade Brasileira parece ter percebido finalmente o risco do
Fundamentalismo Religioso.
A disputa em curso é muito maior
do que a de quem irá presidir uma Comissão do Congresso.
A luta para derrubar Marco
Feliciano é a materialização do confronto entre as posições em defesa do
Estado Laico e o Fundamentalismo Religioso. O que está em jogo é a opinião da
sociedade sobre as liberdades individuais e religiosas, sobre a laicidade do
Estado e sobre o perigo fascista do fundamentalismo religioso.
Para derrotar o fundamentalismo,
não podemos subestimar seu poder. Seus quadros políticos são preparados e
exibem grande capacidade de oratória e convencimento. Mas também seria um erro
superestimar sua força. Entendê-los como todo-poderosos que não podem ser
derrotados, criaria um sentimento paralisante na sociedade, que pouco
contribuiria para o enfrentamento.
Então é importante conhecer,
entre outros, os seguintes pontos de fragilidade dos fundamentalistas.
1 – O debate sobre a imensa
fortuna dos pastores (inclusive registrada pela revista “Forbes”) os deixa
muito fragilizados: não há “teologia da prosperidade” que explique que
essa prosperidade só chegue para pastores, enquanto seus rebanhos seguem
massacrados pelo capitalismo selvagem.
2 – Não é tão fácil quanto eles
dizem mobilizar sua base social para uma disputa política aberta. Todas as vezes
em que eles mobilizaram multidões foi em torno de temas religiosos mais gerais
– as marchas são “para Jesus”, a rejeição ao PLC 122 entra como um tema
“acessório”. Seu rebanho é composto de um público domesticado pelos poderes
constituídos. Quem já o viu presente em um embate no Congresso sente dó
daquelas pessoas que ficam acuadas por não entenderem plenamente o que está
acontecendo. É verdade que, em tese, os fundamentalistas podem arrastar
multidões para o embate público, mas seria uma manobra arriscada tirar essa
gente dos currais do fundamentalismo e jogá-la no lugar do contraditório. Eles
sabem que os argumentos deles só funcionam sem um contraponto de qualidade.
3 – Felizmente, eles ainda não
têm um projeto de poder comum. Cada um tem seu próprio projeto de poder, e os
projetos, muitas vezes, se chocam. Feliciano e outros estão jogando para nichos
extremistas, ao passo que parlamentares fundamentalistas como Marcelo Crivela
sonham em ocupar um cargo majoritário e, para isso, precisam ser mais “amplos”.
Um acirramento de conflito, no patamar realizado por Feliciano, é ruim para os
planos deles. E, mesmo dentro do mundo religioso, os fundamentalistas disputam
territórios de forma bem pouco “elegante”: se hoje Malafaia e Feliciano se unem
por senso de sobrevivência, até pouco tempo se matavam pelo controle da
Assembleia de Deus.
Embora os fundamentalistas não
compartilhem um projeto de poder, eles agem segundo uma lógica política comum,
o que dá lastro a uma articulação importante dentro do parlamento e à aliança
recente para defender Feliciano. O perigo é que eles tenham tanto poder daqui a
alguns anos, que comecem a aventar um projeto de poder comum.
4 – Os fundamentalistas dependem
dos evangélicos conservadores não sectários para terem legitimidade ao
falar em nome do “povo evangélico”. No entanto, as lideranças conservadoras não
confiam nos propósitos dos mercadores da fé, que, por isso, não podem ir longe
demais nos embates, sob o risco de ficarem isolados no próprio mundo
evangélico.
5 – Dentro do movimento
evangélico, há setores progressistas e inclusivos, hoje muito isolados, e que
precisam ser mais visualizados para demonstrar à sociedade que existe sim
evangélicos que não são intolerantes.
É pensar essas contradições que
dá caminhos mais firmes para o movimento pelo Estado Laico e contra Feliciano.
Dificilmente Feliciano sairá da
presidência da Comissão. A não ser que se torne insuportável a pressão
institucional crescente: de seu partido; da Presidência da Câmara, que já
se posicionou pela inviabilidade de Marco Feliciano continuar à frente da CDH;
da Comissão de Ética, que, diante de uma representação do Psol, julgará o uso
do mandato para fins privados.
Feliciano sabe muito bem que, a
cada dia que ficar à frente da Comissão, ele ganhará mais votos de um
eleitorado extremista.
Ainda que não seja fácil derrubar
Feliciano, é fundamental que o movimento siga combativo: que, a cada
dia, os jovens tomem os corredores do Congresso e digam: “Feliciano não nos
representa”, que, a cada dia que a CDH se reunir a portas fechadas por incapacidade
de sua atual direção de dialogar com os movimentos sociais, a cada dia que uma
audiência se inviabilizar porque os convidados se negam a estar num
espaço liderado por um fundamentalista, crescerá, na sociedade, a consciência
do perigo do fundamentalismo religioso.
A cada dia que Feliciano fica à
frente da Comissão, cresce a Frente pelo Estado Laico , que já envolve
artistas, lideranças religiosas, movimentos sociais, parlamentares e milhares
de ativistas nas ruas e nas redes.
Por isso sigamos insistentes e
persistentes ….o tempo que for necessário!
E sejamos “justos”: “Obrigado,
Feliciano, pelo nosso fortalecimento para combater o fundamentalismo. Nunca
estivemos tão fortes e unidos. Obrigado.
Imagem Google
Eduardo
d´Albergaria (Duda) é Cientista Social, Especialista em Políticas Públicas
(MPOG) e militante da Cia Revolucionária Triângulo Rosa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário