sábado, 31 de dezembro de 2011

PORQUE HOJE É SÁBADO...


CONTO DE ANO NOVO

Karina Cabral

Então era ele. Com suas longas barbas brancas, suas vestes brilhantes, seus olhos apertados. Fazia o seu trabalho, como sempre havia feito, momento a momento, sem falhar. Observava tudo e todos, desde sempre; e freqüentemente não gostava do que via. Às vezes pensava que tantas passagens e sua barba tão longa o haviam deixado mal humorado e ranzinza. Nada no mundo parecia agradar-lhe. Principalmente as pessoas.

As pessoas costumavam ignorá-lo no início de suas vidas, pensar que eram suas donas durante a mocidade e amaldiçoá-lo quando envelheciam, pensando nele cada vez mais, conforme se aproximavam da Morte. Achavam que era ele o culpado de tirar o viço e o encanto de tudo que amavam, inclusive delas mesmas. O Tempo sentia-se injustiçado. Não era verdade. As coisas e pessoas perdiam o encanto por si mesmas, e isso porque tinham uma insuportável mania de novidade. Ele mesmo não era novo, e nunca mais seria, e ainda assim era o Tempo, capaz de construir e destruir coisas e destinos apenas pelo fato de existir. Ninguém havia resistido a ele, nunca. As pessoas eram pouco sábias e volúveis, era o que ele achava. Ele, o grande incompreendido, era apenas implacável e eficiente, fazendo o que precisava fazer, brilhantemente e sem erros.

O Tempo, enquanto fazia o seu trabalho, divertia-se observando as pessoas e as maneiras que elas acharam para controlá-lo. Em todos os povos e culturas, desde que tinham começado a habitar o mundo, as pessoas, em algum momento, paravam para pensar nele. Ao longo dos anos, enquanto suas barbas cresceram e embranqueceram, ele riu dos instrumentos inúteis que criaram na tentativa de compreendê-lo, de retê-lo, de segurá-lo. Palavras, relógios, remédios, cirurgias plásticas, nada adiantava. Sem perceberem, as pessoas tornavam-se suas escravas, e ele, o senhor. Ele preferia as plantas e pedras, o céu e as estrelas, que não foram dotados de pensamento. As pessoas o questionavam demais. E o Tempo se irritava, pois nada podia fazer. De sua dor, ninguém se lembrava.

Sua velhice eterna lhe conferia poderes, mas também obrigações. Uma delas, a de ser sábio e imparcial. Não podia conceder benefícios, não podia ser emocional, não podia fazer nada que manchasse sua reputação de Tempo. Era ele quem tinha que ouvir os pedidos das pessoas que, inutilmente, rogavam que ele passasse mais lentamente, ou mais depressa, ou que durasse um pouco mais, ou que finalizasse logo. Não atendia a ninguém. Passava sempre do mesmo jeito, não importava a situação. E, enquanto passava, arrastava tudo com ele. Por isso, por toda essa força, desde o começo, coube ao Tempo a tarefa mais difícil de todas – girar o mundo em seu próprio eixo, sempre no mesmo ritmo.

O Tempo começou a aborrecer-se. E cansar-se. Aquela grande bola que era o mundo parecia pesada demais. Ele cansou de ouvir as pessoas, de ser odiado por elas. Ressentiu-se por elas não reconhecerem o seu valor, de não entenderem que, se ele lhes roubava o curto tempo da felicidade, também era por ele que o tempo da tristeza e da dor terminavam. Cansou-se do passar, da rotina, da sabedoria, de tudo. Já não aguentava mais ver as mesmas histórias, sempre do mesmo jeito – homens, plantas, estrelas, animais, todos nascendo, crescendo, vivendo, cometendo os mesmos velhos erros, e depois morrendo. Seus olhos apertaram-se ao olhar o firmamento, tal como ele, sempre igual. E o Tempo quis parar. E parou.

Enquanto parou, tudo parou com ele. Por alguns momentos, ouviu o silêncio universal e imemorial, e dormiu. Dormiu como há tempos queria fazer, e nunca tinha conseguido. Dormiu profundamente, sono acumulado, ruidoso, sono de velho, sono solitário como todos os sonos. E enquanto dormiu, o Tempo teve um sonho, o mais forte de todos os sonhos.

E o sonho era assim: ele, o Tempo, finalmente morria. Morria sem descendentes, já que nunca esteve apaixonado, nem teve filhos. E rapidamente a notícia se espalhou pelo universo. Por um tempo, todos ficaram chocados. Depois, alguns se sentiram felizes. O Tempo morto, não havia mais compromissos, nem passagens, nem correria, nem mortalidade. Mas, logo todos se sentiram órfãos. Sem o Tempo, nada andava, nada crescia, tudo parava, menos as pessoas e suas angústias.E, tristes, todos foram até o velório do Tempo, chorar por ele.

Em seu velório, todos se perguntavam quem seria capaz de girar o grande globo, e logo todos estavam desesperados, pois não havia ninguém tão forte, nem tão sábio, nem tão poderoso, nem tão imparcial quanto o Tempo para assumir o seu lugar. E foi então que acharam de perguntar, enfim, do que morrera o Tempo. Quem sabe, sabendo a razão de sua morte, poderiam ressuscitá-lo. Examinaram o Tempo, reviram-no, fizeram autópsias das mais diferentes naturezas. E nada encontraram, nenhuma mancha, nenhum sinal, nenhuma agressão ou esquisitice que configurasse a causa da morte do Tempo. Era fato – o Tempo morreu de velhice. Foi vencido pelo único que podia aniquilá-lo – ele mesmo.

Então, quando todos estavam desolados, chegou a Esperança. Ela, toda de negro, doente, triste, aproximou-se do Tempo, e chorou. Ela sempre fora apaixonada por ele, o amava profundamente em silêncio, ela, que era sempre jovem, bela e desejada…E agora, com a morte de seu amado, não tinha mais motivos para viver. E ali, ao lado do Tempo, começou a definhar.

Então Alguém decidiu que o Tempo merecia uma outra chance, pelo bem de todos. E ele foi tocado, e seu sopro de vida restaurado. O Tempo acordou só para dizer que não queria mais viver. Estava velho, e triste, e cansado, e agora era amante da Morte. Queria apenas ficar como estava. Os lamentos foram muitos, e altos, e ensurdecedores. Como o Tempo podia querer morrer? Não tinha esse direito. O impasse estava criado.

O mesmo Alguém voltou e fez uma proposta ao Tempo. Ele seria, de períodos em períodos, transformado em menino, e assim ganharia novo vigor e força para girar o mundo. E assim, seria novamente jovem, e depois maduro, e depois velho, e quando ele se sentisse novamente velho, voltaria a ser menino, para recomeçar o ciclo. Em troca, ele prometeria não deixar de fazer o seu trabalho, e ainda olhar para a dor e a felicidade das pessoas com olhos mais amorosos. O mesmo Alguém também prometeu que daria às pessoas a capacidade de contar o Tempo, e, assim, a oportunidade de pensar sobre ele com sabedoria e carinho. Daria também a algumas delas discernimento e juventude de alma, para que espalhassem aos outros, e assim, quem sabe, parariam de culpá-lo e sobrecarregá-lo sobre tudo que deixaram de fazer ou fizeram errado. Daria às pessoas a consciência e a liberdade de fazer seus dias felizes, e de recomeçarem, caso algo desse errado. Ao aceitar a proposta, o Tempo voltou a ser menino. E foi quando o Tempo acordou.

Acordou sentindo-se jovem. Desde então, as pessoas inventaram calendários, folhinhas, marcações, relógios, cronômetros. E inventaram o ano, porque algo mágico ocorria de períodos em períodos. O Tempo, quando via que as pessoas estavam cansadas e sobrecarregadas, aproveitava para dormir um pouco e sonhar novamente aquele sonho, acordando mais jovem na alma, até se cansar novamente e recomeçar. Junto com ele vinham todos os seres, que ficavam mais velhos, mas tinham a impressão de não estar. Para isso, pediu ajuda de Esperança, que ficou felicíssima. Há quem jure que eles passam juntos a noite da virada do ano fazendo amor apaixonadamente. O Tempo, hoje, é um senhor amável, sem deixar de ser imparcial, sábio e competente. E, apesar de girar o mundo sempre e sempre, desde que o Tempo sonhou com a sua morte e sua vida, dá a si mesmo e às pessoas a chance de recomeçar, a cada início de ano.

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