sábado, 3 de setembro de 2011

PORQUE HOJE É SÁBADO...



A TERCEIRA COISA MAIS INDISPENSÁVEL NA MINHA VIDA

Raymundo Silveira*


Cronista arranja cada tema! Vejam em que fui pensar quando me sentei a este computador para escrever, mas ainda não sabia sobre o quê! Depois do ar e dos alimentos, qual seria a terceira coisa sem a qual eu não sobreviveria? Uma prosaica caneta esferográfica – podem acreditar.

O mais surpreendente é que as recebo – de laboratórios farmacêuticos – quase todos os dias, de graça e às dezenas. Mas elas costumam faltar nos momentos mais necessários.

Vamos imaginar a vida sem uma caneta. Às vezes até me desespero pela falta de uma delas, creiam. Tenho o costume de usar o vaso sanitário, lendo ou escrevendo. É uma dependência pior que a da heroína, pois a carência do objeto do meu vício, além da síndrome de abstinência, causa-me outros efeitos colaterais, inclusive o de não cumprir o ato fisiológico pretendido.

Vez em quando estou lá, lendo tranquilamente, quando surge a necessidade imperiosa de anotar alguma coisa. Entro em pânico! Em se tratando de algo que precise ser assinalado no próprio texto, passo a unha mordo cuspo rasgo molho, todavia o máximo que consigo é danificar a palavra ou a frase impressa. Quando não acontece o mesmo com o livro, a revista ou  com a folha de papel onde acabei de imprimir um trabalho.

Quem, como eu, ainda frequenta filas repletas de gente estressada e precisou de uma caneta para preencher um cheque, uma guia de depósito ou um jogo da Mega-Sena, sabe muito bem do que estou falando. Alguns semblantes são tão patibulares que não me atrevo a pedir uma emprestada. Às vezes, espero que o caixa me faça este favor ou saio da fila para apanhar com um funcionário, mas tremendo de medo que não me deixem voltar para onde eu estava.

Em junho de 1989, faltavam seis meses para o Color tomar posse (e a poupança do povo), quando tive uma premonição. Balancei as cumbucas, raspei o que havia em dinheiro e abalei para a Europa viajando de primeira classe por uma companhia aérea inglesa. Costumo viajar de jeans, tênis e essa coisa toda de malandro brasileiro. Pois me assentaram vizinho a um lorde inglês, parecido com aquele proprietário rural que aparece no filme Vestígios do dia. Só uma das mangas do paletó do anglicano devia ter custado mais do que toda a minha bagagem. O gringo parecia achar que ao lado dele jazia a mochila de um jeca, e não uma pessoa. Não se dignava nem a olhar para mim. Fiquei na minha, claro. Quando estávamos prestes a aterrissar em Heathrow, a tripulação distribuiu aquelas papeletas chatíssimas para serem preenchidas sobe pena de não permitirem o desembarque.

Procurei uma caneta nos bolsos e na minha bagagem de mão como quem procura ar quando está sem fôlego. Nada! Estava disposto a pagar o preço que não paguei – para economizar – por uma garrafa de uísque oferecida pelo serviço de bordo, e que eu quase arrebatei das mãos da comissária.

O gringo fingia que não estava vendo.

“Do you have a pen, Sir?”. Consegui balbuciar como se estivesse a solicitar um vultoso empréstimo ao gerente de um determinado Banco onde nunca tive conta e evito até passar pela calçada. O súdito da Elizabeth II esboçou um leve sorriso e me emprestou a caneta, sem uma palavra.

Para não dizer que não “conversou” nada comigo, quando a aeronave parou no pátio de estacionamento arrisquei: quem sabe agora. “We just arrived, sir”, e obtive esta resposta: “Yes, we arrived”. E só! Foram as únicas palavras que o ouvi pronunciar em dez horas de harmonioso convívio aéreo.

Mas estou fugindo do assunto que não é a viagem, e sim, caneta – como já disse, a terceira coisa sem a qual eu não sobreviveria.

Tenho agora mesmo aqui na minha escrivaninha (esperem, deixem-me contar), só na primeira gaveta, oito canetas. E mais uma dúzia na sua vizinha de baixo. Não precisava de nenhuma. Enquanto escrevia este texto tive necessidade de ir ao banheiro e levei parte dele já impresso para fazer algumas emendas. Claro que não poderia esquecer de levar uma delas. Juro que estou falando a verdade: precisamente naquela que levei, não havia uma única molécula de tinta.



*Membro da SOMBRAMES (Sociedade Brasileira de Médicos Escritores). Crônica extraída de seu livro Louca Uma Ova, Ed. Premius, 2010.



Nenhum comentário: